Linguagem Inclusiv@: O que é e para que serve?!

O seguinte texto é um capítulo do livro “Introdução Crítica ao Direito das Mulheres”, volume 5 da série O Direito Achado na Rua, cujo lançamento será amanhã (30/06/12), das 9h às 12h, no Núcleo de Prática Jurídica da UnB (NPJ), na Ceilândia.[1]

Todas e todos convidadas/os!

Linguagem Inclusiv@: O que é e para que serve?!

Está cada vez mais comum escrever utilizando linguagem inclusiva. Na internet frequentemente encontramos textos escritos com palavras que substituem os radicais de gênero das palavras (letras “a” e “o”) por @, x, as/os, is, etc. Mas afinal de contas, você sabe pra que serve tudo isso? Essas palavras escritas de forma “estranha” buscam retirar das palavras o seu gênero ou incluir nelas ambos os sexos. Num primeiro momento pode parecer besteira, mas neste texto pretendemos mostrar a tod@s/todxs/todos e todas vocês como que através da linguagem construímos todo um imaginário de mundo e de história com os quais nos identificamos e damos sentido a nossas vidas.

Wittgenstein foi um filósofo que dedicou sua reflexão para a linguagem e trabalhou demasiadamente este conceito. Para ele, a linguagem é como um espelho do mundo e vice versa.  De fato, é possível perceber que a linguagem não é apenas uma forma de comunicação: ela é uma expressão cultural de determinada sociedade. Ao nos comunicarmos através de palavras vamos automaticamente construindo imagens em nossas mentes. Assim, é importante percebemos que essa expressão cultural deixa transparecer os inúmeros preconceitos arraigados ao seu contexto. Por exemplo, ao falarmos que “a coisa está preta” com tom pejorativo, estamos imaginando e construindo a ideia de que o “preto” está ligado a coisas “ruins” e negativas. O fato de que muitas vezes a linguagem sexista, racista, misógina e antropocêntrica passa despercebida não quer dizer que ela deixa de reproduzir e reafirmar as desigualdades sociais.

Linguagem inclusiva de gênero é uma opção de linguagem que busca desconstruir duas ideias: 1) a ideia do masculino como universal e 2) o sexismo estabelecido na linguagem.

Vamos por partes. Digamos que uma professora entra em sala de aula e quer dizer “bom dia” para a turma, mas nesse caso só existe um aluno homem dentre quarenta e nove alunas mulheres. Em boa parte dos casos, esta professora vai dizer “bom dia a todos”, certo? Quando a professora opta por usar o plural no masculino para se referir aos alunos (mesmo que sua esmagadora maioria seja mulher) subentende-se que o “normal” é que quando se cumprimenta um homem, cumprimentam-se automaticamente todas as mulheres que/se estiverem presentes.  Por que será que o contrário (usar o plural no feminino, ainda que existam homens no local) não pode ser aceito? As mulheres foram habituadas a se sentirem incluídas nos termos masculinos, mas os homens não conseguem sentir-se incluídos nos termos femininos. Muitos homens chegam, inclusive, a se sentir ofendidos caso alguém se refira a eles utilizando palavras no gênero feminino. Esta é uma construção cultural sexista e machista.

Esse tipo de comportamento ajuda a perpetuar posições hierárquicas desiguais entre homens e mulheres, pois se subentende que o gênero nomeado e destacado na linguagem é o masculino, ficando as mulheres invisibilizadas e relegadas a estâncias inferiores de representação. A prova de que há machismo/inferiorizarão do feminino na construção da nossa língua é a impossibilidade de se utilizar o feminino como universal (no lugar do masculino).

Diante disso, podemos entender que a linguagem não é só importante para a comunicação, mas também para nosso imaginário. Quando falo a palavra “primitivo” (historicamente falando), sem sombra de dúvidas a primeira coisa que me vem a cabeça é um homem, barbudo, peludo, semi-nu vestido apenas com uma canga. Não pensamos numa mulher, de forma alguma, quando ouvimos ou lemos a palavra “primitivo”. Da mesma forma, quando falamos “os advogados acabaram de sair do tribunal”, instantaneamente imaginamos homens de terno, engravatados, com pastas embaixo dos braços, saindo de um tribunal. Por outro lado, quando falamos “os advogados e as advogadas…”, já conseguimos pensar em homens e mulheres que são advogados e advogadas saindo de um tribunal. Percebe como fica mais plural e inclusivo? Em resumo, quando incluo as mulheres na linguagem, consigo incluí-las na imagem que faço desse acontecimento. Assim, a história que se forma em minha cabeça, na situação que crio com a minha imaginação abre espaço para que as mulheres de alguma forma passem a existir e atuar.

Um exercício interessante é tentar passar um dia falando no feminino todas as palavras no plural que possuam gênero. Não que a proposta da linguagem inclusiva de gênero seja impor o feminino como universal, longe disso. Esse exercício serve apenas para percebermos o quanto o sentido de algumas palavras muda com uma simples inversão de gênero. Por exemplo: “Eles são bons” é completamente diferente de “Elas são boas”, não é mesmo? É aí que nos deparamos com o sexismo na linguagem.

Os papéis diferenciados de ocupação na linguagem para os sexos feminino e masculino são reflexo de construções sociais que em todos os espaços estabelecem posições para mulheres (inferiores) e para homens (superiores) que não permitem uma relação horizontal e harmoniosa, pregando sempre a superioridade e domínio de um sobre o outro. A linguagem tal qual nós a conhecemos hoje em dia estabelece que o universal é o masculino, e que no masculino as mulheres são encontradas. Esse pensamento retira das mulheres a condição de sujeitos, deixando-as a margem e sob o véu dos homens, reproduzindo e dando respaldo à sociedade patriarcal e sexista em que vivemos.

A linguagem não é só símbolo, ela é mais, ela representa uma realidade criada por nós, mulheres e homens. A iniciativa de incluir mulheres nas referências orais e escritas, ou seja, na linguagem de uma forma geral, busca gerar uma mudança de mentalidade, pois se entende que só a partir do momento que as mulheres tiverem voz ativa poderão construir uma realidade que as inclua, que as referencie e que permita que elas sejam sujeit@s históric@s.

Nesse sentido, atualmente, está em tramitação, no Brasil, uma lei que obriga os documentos oficiais do governo a se adequarem a linguagem inclusiva, modificando termos misóginos e racistas e alterando os gêneros das palavras para destacar homens e mulheres sempre. A reconstrução da linguagem se apresenta como forma de buscar uma transformação no imaginário coletivo, mudança essa que permitirá as mulheres historicizarem-se e existenciarem-se, gerando um novo tipo de consciência na população.

A linguagem, como a própria cultura, não é estática, muito pelo contrário. A única coisa constante nelas é a mudança. Vale lembrar que foi assim que surgiram várias línguas derivadas do latim, como o próprio português e também é por isso que o português brasileiro é tão diferente do falado em Portugal. O discurso que prega que não podemos escrever fora do padrão “culto” é sustentado pelxs mesmxs que julgam que não podemos modificar a nossa realidade em busca de um mundo mais justo. Sempre que a parcela da sociedade insatisfeita com as idéias hegemônicas se manifesta é comum este tipo de reação dxs satisfeitxs. Este discurso objetiva simplesmente incutir na cabeça dxs excluídxs que as desigualdade são “naturais” e não impostas injustamente.

Outro ataque feito à linguagem inclusiva é de que ela deixa a leitura “feia”. No entanto, é importante ter em mente que a solução para nossos problemas não é passar maquiagem na ferida sem tratar a doença que a causou. Utilizando um conceito histórico, a “higienização” do Rio de Janeiro para chegada da família real não resolveu o problema da pobreza na cidade maravilhosa (e jamais resolveu em qualquer outra parte do mundo). O mesmo vale para o sexismo na linguagem. Não é fingindo que está tudo bem e utilizando uma linguagem muito bem escrita que vamos solucionar o problema de viver em uma sociedade que reiteradamente exclui as mulheres.

Sabemos que não é fácil utilizar linguagem inclusiva, mas ninguém disse que mudar o mundo seria uma tarefa simples. Há muitas maneiras de se falar inclusivamente e é até bom porque variam de acordo com a situação. Na escrita formal, por exemplo, é perfeitamente plausível a utilização de parênteses ou barras para referenciar as duas terminações possíveis das palavras (todos/as, todas/os, elas/es, eles/as – há quem diga que o “a” deve vir na frente por ordem alfabética). Já na linguagem oral, é difícil falar nos dois gêneros sempre, então uma boa saída é falar os dois gêneros nas palavras mais chamativas, como o já famoso “todas e todos” e quando forem as demais palavras, simplesmente escolher em qual dos gêneros vai falar de acordo com a vontade da/o locutor/a e com prévio aviso as pessoas que a/o escutam.

Em textos alternativos e informais, é possível utilizar o “x” ou mesmo um símbolo como o arroba (a+o=@) para destacar que a/o autor/a está atenta/o para a linguagem que utiliza. Também é possível escrever um texto completamente no feminino e com uma pequena nota de rodapé esclarecer as/os leitoras/es sua escolha.

Existem também sugestões para que os homens falem no plural com o masculino e as mulheres no plural com feminino, no mesmo intuito de “obrigado” e “obrigada”, ou seja, como uma regra de etiqueta.

Enfim, existem infinitas possibilidades. O importante é estarmos cientes da importância das palavras e da comunicação na construção da nossa realidade social enquanto mulheres e do nosso papel protagonista na luta constante de combate à imposição do masculino como universal e superior (para além da linguagem).

Só estaremos realmente incluídas na sociedade quando aprendermos a evidenciar a nós mesmas!

*

Longe de encerrar o debate, a intenção do texto não é fazer com que todas as pessoas passem a utilizar a linguagem inclusiva, pura e simplesmente. Para além disso, o objetivo é ensejar a reflexão e o debate, trazendo para a discussão o papel do simbólico no nosso cotidiano, esclarecendo o porquê de várias pessoas acreditarem da importância da língua como parte da luta na desconstrução da sociedade machista em que vivemos.

Você não precisa concordar, não precisa usar; mas espero, sinceramente, que pense, reflita, conteste, e antes, e acima de tudo, respeite.

Por Ana Paula Duque

*O capítulo do livro foi escrito por Ana Paula Duque, em coautoria com Rayane Noronha e Luana Weyl


[1] A versão virtual do livro pode ser encontrada, juntamente com outros volumes da série já lançados, no blog do Direito Achado na Rua: http://odireitoachadonarua.blogspot.com.br/p/publicacoes.html

Por que a língua portuguesa não é machista

Quando criança, eu nunca gostei de quando minha mãe se referia a mim e ao meu irmão como “vocês”, a não ser quando era para elogiar, porque aí tudo bem. O problema era quando um de nós fazia algo de errado e ela acabava brigando com os dois, no plural. Se sua mãe não tinha essas manias, você certamente teve professores que o fizeram, como naqueles momentos mais que enfadonhos quando a sala inteira era obrigada a ouvir galhofas sobre o que alguns poucos, ou apenas um aluno fizera de errado.

São duas as coisas que me incomodam tanto quanto ouvir os sermões da minha mãe ou dos meus antigos professores. A primeira delas é dar à linguagem um caráter metanarrativo, que é diferente do meu discurso; a segunda, é negar minha individualidade, ou, em outras palavras, fazer com que toda minha forma de pensar, que é diferente, ou apenas minha, seja restrita à estrutura da língua e não ao modo como penso, embora concorde com um pensamento aqui e outro ali, porque, convenhamos, é um pouco difícil ser totalmente original.

Como diz o título, estou me referindo à linguagem inclusiva. O nome remete à inclusão das mulheres num discurso (ou metadiscurso?)[1] no qual elas eram desde sempre excluídas, de acordo com essas próprias mulheres. Nossa língua, com quase nenhum resquício do gênero neutro (como os pronomes “aquilo” e “isto”), sempre deu mais ênfase ao gênero masculino. Quando, por exemplo, nos referimos a um homem e a uma mulher, nós usamos o pronome pessoal “eles”, mesmo se forem duas mulheres e apenas um homem.

Uma breve retomada ao aspecto histórico da língua pode nos responder por que o português tem preferência sobre as desinências masculinas às femininas. A língua portuguesa foi-se transformando a partir do latim (ou, especificamente, do latim vulgar, conhecido como sermo vulgaris), que possui o gênero neutro além dos outros dois. Quando declinamos os pronomes pessoais is, ea, id (ele, ela, isso), temos no caso ablativo: eo, ea, eo (para ele, para ela, para ele); no genitivo plural: eorum, earum, eorum (deles, delas, deles), sem citar os casos genitivo singular e dativo, nos quais as três declinações de gênero são iguais (ejus, ei, respectivamente).

Outros exemplos como o adjetivo “bom” (bonus, -a, -um) tornam mais explícita a semelhança. No genitivo: boni, bonae, boni (de bom, de boa, de bom), como em “de boa vontade”, bonae spontis; no ablativo: bono, bona, bono (para o bom, para a boa, para o bom), em “para o bom menino”, bono puero. E os exemplos são quase inesgotáveis. Os idiomas vindos do latim suprimiram o gênero neutro pois o gênero masculino já cumpria sua função. Assim, ao invés de se usar o neutro para se referir a duas pessoas de gêneros diferentes, utiliza-se, portanto, o masculino.

No idioma holandês não existe essa diferença entre os pronomes pessoais relativos à maiorias ou artigos masculinos e femininos (quando há um homem e duas mulheres, diz-se “zij” – pronuncia-se zéi, sendo o contrário também verdadeiro). O verbete “de” é utilizado para se referir tanto à “de man” (o homem) quanto à “de vrouw” (a mulher); do mesmo modo, “het” relaciona-se aos substantivos neutros, como em “het strand” (a praia). O plural de todas as palavras, masculinas, femininas e neutras é representado por “de”, como em “de kinderen” (as crianças) ou “de huizen” (as casas).

O bom de tudo isso é que, desde a criação do idioma holandês, o uso do mesmo artigo para o singular e o plural, ou masculino e feminino, nunca foi sonoramente estranho a seus falantes pelo simples fato de as pessoas não terem tido tempo de se acostumar com o contrário. Poderíamos até pensar em usar outras vogais para nos referirmos a homens e mulheres no português, mas soaria tão estranho que o bom senso me leva a acreditar que as pessoas nunca se acostumariam com isso – em outras palavras, não daria certo.

Idiomas como o português, o francês e o italiano[3] dão relevância às desinências masculinas sobre as femininas pois vieram do latim, como já explicado. A justificação do “machismo” por trás da língua portuguesa viera daí, uma vez que a sociedade romana era rigidamente patriarcal (centrada na figura do paterfamilias), embora também o fossem os países de língua inglesa, onde a figura do homem também representava o núcleo familiar e social, enquanto a mulher se ocupava dos afazeres domésticos e dos filhos. Apesar disso, a língua inglesa não faz qualquer distinção de gênero a partir de maiorias – quando há duas mulheres e um homem, usa-se o pronome “they”, como no caso do idioma holandês.

A Holanda foi, curiosamente, um dos primeiros países do mundo a conferir o direito de voto às mulheres, em 1917. Apesar disso, a Rússia, cujo idioma se utiliza de pronomes diferentes para o masculino (Он), feminino (Онa) e o plural (Oни), dando prioridade ao masculino, também o fez logo no mesmo ano durante a Revolução Bolchevique. Nos Estados Unidos, a luta pelo direito de voto das mulheres começou em 1848, tendo sido “concretizada” apenas em 1920, quando foi aprovada a Emenda Constitucional nº 19 e 36 dos 48 estados americanos tiveram de ratificá-la. Estados conservadores como o Mississipi só a ratificaram décadas depois, em 1984.

E por que falar do voto? Ora, se o voto não é uma das expressões sociais mais significativas? Foi o voto que deu às mulheres maior possibilidade de serem ouvidas no âmbito político e social, além de fazer valer suas vontades como as dos homens, ainda que de modo restrito, pois as leis não abrangem de todo o pensamento das pessoas. O fato é que usei desse exemplo para dizer que não, a estrutura da língua não pode limitar o modo de pensar de uma sociedade ou de um indivíduo.

O voto não diz que não haja machismos na sociedade pelo fato de ter sido concedido o direito de voto às mulheres e sim que há uma parte daquela sociedade que não é machista. Apesar de lados diferentes contemplarem a mesma língua, há pessoas que são machistas e pessoas que não o são. O caso se torna mais explícito quando analisamos o aspecto da língua sobre as colônias que receberam o idioma do país colonizador como seu. Dentre elas está a Nova Zelândia, colônia inglesa e o primeiro país do mundo a dar o direito de voto para as mulheres, em 1893!

Tal como minha mãe e meus professores ao desconsiderarem o comportamento dos demais alunos, dizer que a estrutura das palavras oprime pelo simples fato de dar relevância para as desinências masculinas em prol das femininas (lembrando mais uma vez que o português não possui desinências neutras e, mesmo se houvesse, elas se pareceriam bem mais com as masculinas, pois “aquilo” ou “isto” terminam com “o”) é dizer que há um metadiscurso específico por trás da fala de cada pessoa, um metadiscurso que exclui, mesmo sem querer, a intenção do locutor.

Em outras palavras, é dizer que tudo o que eu penso ou acredito é condicionado pela forma como a estrutura de uma frase se constrói e não pelo modo ou o contexto em que a uso. Se assim o fosse, não poderíamos jamais dizer que alguém usou de algum contexto ironicamente, embora eu não entenda muito de ironias, pois estaríamos analisando apenas a estrutura semântica/sintática da frase, deixando de lado toda a intenção por trás do discurso.

Um dos meios criados para contornar essa “opressão” é citar as desinências femininas separadas por algum sinal junto às masculinas, embora as femininas, na maioria das vezes, estejam sempre a frente, como exemplo, dizer “as/os alunas/os” ou até usar “x” e “@”, como “alunxs” e “alun@s”. O grande problema disso é que a maioria das pessoas não consegue terminar de ler uma frase inteira assim sem se cansar, conquanto a maioria dos textos do Direito consiga fazê-lo sem ter que se utilizar de repetições desnecessárias, apesar de também fazer uso dessas mesmas repetições.

Admito que a ideia por trás da linguagem inclusiva é das melhores, mas que é praticamente, para não dizer de todo, intangível em nosso idioma. Nos acordos ortográficos que promovem mudanças na língua portuguesa é sempre tomado bastante cuidado ao se suprimir acentos gráficos, deixando a fonética quase sempre inalterada, uma vez que é de conhecimento geral que a palavra começaria a soar de forma estranha e o termo logo cairia em desuso, podendo o acordo ser, inclusive, desconsiderado por seus falantes.

Há algum tempo, li um manual muito interessante sobre o “uso não sexista” da língua portuguesa, o que concilia bem os dois lados, tanto das feministas, quanto dos demais leitores que não precisam se cansar para terminar de ler um texto. O único detalhe é que, embora seja uma ótima proposta, talvez as pessoas não estejam acostumadas a substituir um “os habitantes nunca estão contentes com o transporte” por “nunca se está contente com o transporte”, por uma simples questão de praticidade, como exemplo do próprio manual – a mesma praticidade que transformou, sucessivamente, o “vossa mercê” em “você”.

Por fim, podemos substituir palavras como “os juízes” por “poder judiciário” ou “os assessores” por “a assessoria” sem quase nenhuma dificuldade. Talvez o fato demandasse algum tempo para que as pessoas se acostumassem, mas, antes de tudo, devemos entender que o discurso nunca é realmente neutro e que a linguagem nunca fala por si só, principalmente em uma sociedade tão multicultural como o Brasil do século XXI. No caso americano, a sociedade possuía costumes diametralmente opostos entre o norte e o sul, como no caso do Mississipi, e ainda assim compartilhavam do mesmo idioma, que não faz distinção de desinências. Podemos dizer, então, que o inglês retratava o machismo do sul nas regiões do norte? A resposta fica por sua conta.

Não podemos negar que existem prerrogativas em uma fala, embora elas não se refiram a um contexto estranho ao conhecimento do locutor, mas, sim, a cada pessoa separadamente (com todas as suas implicações históricas e sociais). Tomar tal premissa como certa é fazer justamente o contrário do que a linguagem inclusiva propõe, que é descaracterizar a expressão por trás da fala de cada pessoa, como as próprias leis o faziam ao tentar calar os anseios de tantas mulheres, que foram pouco a pouco garantindo seus direitos através do voto, principalmente o direito de poderem se expressar sem que suas falas estivessem ligadas a um discurso característico daquela mesma sociedade machista que ainda deixa seus resquícios por entre os tempos.

Marconi de Paiva Lenza


[1] Uso o termo “metadiscurso” no sentido de um discurso além do discurso. Um discurso que é estranho ao meu, como dizer que minha fala é machista (metadiscurso) por usar “Bom dia, alunos”, querendo me referir a todas as pessoas presentes na sala (meu discurso). Reparem que minha intenção não foi negar o fato de que nossas ideias são condicionadas pela convivência no mundo e com outras pessoas, mas tão somente criticar a premissa de que a estrutura de uma língua pode falar por si própria conquanto a intenção do falante é desconsiderada.

[2] Declinar uma palavra significa flexioná-la de acordo com a função que ela exerce numa frase (caso). Por exemplo: regina (rainha) é escrito assim quando exerce a função de sujeito ou predicativo do sujeito. Se fosse um objeto direto, seria escrito como reginam (regin – radical; am – desinência do caso acusativo singular, que representa os objetos diretos). Nautae reginam vocabant (Os marinheiros chamavam a rainha).

[3] Na linguagem do dia-a-dia, usa-se comumente o pronome “loro” para se referir ao plural. No entanto, a literatura italiana, principalmente tradicional, do mesmo modo que faz uso do passato remoto no lugar do passato prossimo, apesar de possuírem o mesmo significado, também se utiliza de pronomes como “egli” (ele) ao invés do “lui“, “ella” (ela) no lugar de “lei” e, por fim, “essi” (eles) e “esse” (elas) ao invés do pronome “loro” (eles), que não faz distinção de gênero na referência.

Um jurista revolucionário

Por Fernanda Potiguara

Inúmeras vezes nos questionamos dentro do direito qual seriam as atitudes que viabilizariam uma sentença justa. Descobrimos aos poucos, no decorrer do curso, a importância de palavras tais como a alteridade, a sensibilidade na aplicação do direito, principalmente quando nos referimos às sanções do direito penal. Enfim, aprendemos que as nuances do fático devem alterar profundamente a aplicação da regra ao caso, caso contrário a decisão passaria longe de um ideal de justiça.

Por outro lado, percebemos que o direito não é aplicado desta forma justa a todos e que muitas vezes essa aplicação beneficia a uns poucos já privilegiados. Por exemplo, para alguns ilícitos a sanção é certa, eles tomam forma de crime e os que o cometeram são estigmatizados; outros ilícitos nem são questionados, mal são combatidos e dificilmente seus praticantes recebem sanções.  Geralmente o aplicador do direito e sua classe social levam vantagem por serem os detentores da lei e das interpretações de sua aplicação.

Tudo isso fica claro para (espero) todos nós estudantes de direito do séc. XXI.

Mas… e se voltássemos um pouquinho no tempo?

Eu me deparei pensando num, digamos, jurista que teve essas mesmas percepções muito antes dos pensadores modernos, muito antes das teorias hermenêuticas atuais, dos conceitos teóricos de estigma ou da pesada filosofia de Levinas.

Ele vivia numa comunidade onde as leis possuíam um caráter dogmático: eram praticamente imutáveis por pelo menos mil anos, e a desobediência a esses preceitos levava a pena duras, inclusive abrigando a de morte.

A lei se misturava à religião e os sacerdotes eram os principais intérpretes. Por vezes, essa interpretação era tendenciosa e pautava seus interesses, o que o levava a questionar até que ponto a tradição não servia aos próprios juristas. Certa vez, expôs ele que uma regra inflexível, cuja pena era a morte, admitia exceção quando os recursos em questão se convertiam ao templo.[1]

Sobre essas incoerências ele não se acovardava em discursar que uma vez que se julga, deve-se dispor também a julgamento e, portanto, deve-se cumprir na íntegra o que se exige.

Ele mesmo buscou cumprir integralmente essa lei, dizendo que sua função não era revogá-la.[2]

Prova disso é que quando lhe foi exigido, ainda que injustamente, um imposto, ele o pagou, mesmo não sendo um homem de posses.[3]

Porém, ao contrário do que era esperado, esses juízes cobravam do povo leis que sobrepujavam em muito o que os próprios juízes praticavam[4]. E a partir de seus alertas, outros sacerdotes começaram a questionar a legitimidade desses juízes e inclusive a afirmação de que realmente o povo não tivesse condições de saber a lei, e interpretá-la,[5] afinal, o jurista de que falamos não era um homem de grandes estudos.

Outro ponto que o caracterizou profundamente foi quanto a seu contato com pessoas marginalizadas na sociedade. Para os sacerdotes-juristas, o simples contato com pessoas “imundas” como prostitutas, publicanos [6], estrangeiros consistia num delito. Ao contrário de repulsa, ele se comovia com essas pessoas, entendendo a necessidade que tinham de que ele lhes retornasse a honra e a dignidade, inclusive a reestruturação de seu convívio social. Isso não seria possível se as barreiras entre o jurista e o “criminoso” estivessem tão rígidas e também não seria possível se o jurista não fosse sensível para perceber o arrependimento e promover a concessão do perdão.[7]

E para essas pessoas fragilizadas dentro da própria sociedade, a lei deveria ser interpretada de outra forma, ou seja, de modo a não aumentar ainda mais a carga imposta sobre elas. Um dos casos que narrou em que a pena da lei não foi aplicada na forma prevista foi o caso do julgamento de uma mulher em adultério.

Como forma de armadilha à sua própria teoria de compaixão, certos juristas lhe questionaram qual seria a pena a ser aplicada ao caso, uma vez que a lei era categórica em prever a pena de morte por apedrejamento. A resposta do jurista foi objetiva: se há tal sanção prescrita, que aplique a lei quem nunca a tiver descumprido.[8] E, como era de se esperar, não houve quem pudesse condená-la.

Já sabem de quem se trata? Pois bem! E não foi só nessa passagem que Jesus Cristo relativizou ou reinterpretou regras para promover a sua aplicação justa.

Por exemplo, apesar de ter sido rejeitada sua estadia em Samaria[9], cidade que apresentava um histórico de desavenças com os judeus, ele teve a audácia de conversar com uma Samaritana (atitude proibida aos judeus)[10] e passar a ela sua doutrina. Diz em João 10 que um doutor da lei havia questionado quanto ao mandamento “amarás teu próximo como a ti mesmo”: quem seria esse próximo? A resposta de Jesus foi no sentido de modificar completamente o que se entendia por próximo à época. Não era o familiar judeu que lhe fazia o bem, mas o Samaritano odiado, em apuros, desprezado.[11] E por isso mesmo a figura do Samaritano era ideal para caracterizar a nova interpretação da regra.

Outra situação bastante interessante consiste nas muitas passagens Bíblicas em que ele foi questionado por quebrar o sábado, ou seja, por exercer qualquer atividade nesse dia, que pela lei mosaica seria um dia sagrado de descanso.[12] Mas a resposta que Jesus Cristo dá a essas acusações, descrita no livro de Marcos, é belíssima: E disse-lhes: O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado. (MARCOS 2: 27)

Pode soar comum aos nossos ouvidos, mas a sua interpretação dada à norma tem um quê totalmente revolucionário. Quantas vezes nos esquecemos dessa ordem: de que a lei é feita para nós, seres humanos, e não nós feitos para nos adequarmos sem exceções às normas. Que, por trás da pretensa abstração da norma temos vidas, com histórias diferentes e que, por isso mesmo, a cobrança da norma deve ser feita de forma a atender essas diferenças.

E como cobrar que alguém cumpra a lei na íntegra se nós mesmos não a cumprimos? Quem nunca pecou que atire primeiro a pedra. Enquanto não entendermos essa nossa própria fragilidade no cumprimento da lei, de que forma, como futuros juristas, aplicaremos suas penas?

Ou como diz Mateus 7: 3-5: “E por que reparas tu no argueiro que está no olho do teu irmão, e não vês a trave que está no teu olho? Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, estando uma trave no teu?   Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então cuidarás em tirar o argueiro do olho do teu irmão”.

Então? Você sabia dessa faceta jurídica de Jesus? Por todas essas análises e por outras tantas que eu o considero um personagem riquíssimo, cujos ensinamentos permanecem atuais. De forma alguma Jesus Cristo pode ser classificado como uma figura esquecida num livro religioso antigo. Ele nunca foi careta.



[1]Mt. 15: 1-9)

1   Então chegaram ao pé de Jesus uns escribas e fariseus de Jerusalém, dizendo:  Por que transgridem os teus discípulos a tradição dos anciãos? pois não lavam as mãos quando comem pão.  Ele, porém, respondendo, disse-lhes: Por que transgredis vós, também, o mandamento de Deus pela vossa tradição? Porque Deus ordenou, dizendo: Honra a teu pai e a tua mãe; e: Quem maldisser ao pai ou à mãe, certamente morrerá. Mas vós dizeis: Qualquer que disser ao pai ou à mãe: É oferta ao Senhor o que poderias aproveitar de mim; esse não precisa honrar nem a seu pai nem a sua mãe, E assim invalidastes, pela vossa tradição, o mandamento de Deus. Hipócritas, bem profetizou Isaías a vosso respeito, dizendo:  Este povo se aproxima de mim com a sua boca e me honra com os seus lábios, mas o seu coração está longe de mim. Mas, em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos dos homens

[2] Mateus 5: 17  Não cuideis que vim destruir a lei ou os profetas: não vim ab-rogar, mas cumprir.

[3] Mateus 17:24- 27  E, chegando eles a Cafarnaum, aproximaram-se de Pedro os que cobravam as dracmas, e disseram: O vosso mestre não paga as dracmas? Disse ele: Sim. E, entrando em casa, Jesus se lhe antecipou, dizendo: Que te parece, Simão? De quem cobram os reis da terra os tributos, ou o censo? Dos seus filhos, ou dos alheios? Disse-lhe Pedro: Dos alheios. Disse-lhe Jesus: Logo, estão livres os filhos. Mas, para que os não escandalizemos, vai ao mar, lança o anzol, tira o primeiro peixe que subir, e abrindo-lhe a boca, encontrarás um estáter; toma-o, e dá-o por mim e por ti.

[4] Mateus 7: 1-2 NÃO julgueis, para que não sejais julgados. Porque com o juízo com que julgardes sereis julgados, e com a medida com que tiverdes medido vos hão de medir a vós.

Mateus 23:1-4

ENTÃO falou Jesus à multidão, e aos seus discípulos, Dizendo: Na cadeira de Moisés estão assentados os escribas e fariseus. Todas as coisas, pois, que vos disserem que observeis, observai-as e fazei-as; mas não procedais em conformidade com as suas obras, porque dizem e não fazem; Pois atam fardos pesados e difíceis de suportar, e os põem aos ombros dos homens; eles, porém, nem com o dedo querem movê-los;

[5] JOAO 7:48-51 Creu nele porventura algum dos principais ou dos fariseus? Mas esta multidão, que não sabe a lei, é maldita. Nicodemos, que era um deles (o que de noite fora ter com Jesus), disse-lhes: Porventura condena a nossa lei um homem sem primeiro o ouvir e ter conhecimento do que faz?

[6] Lucas 19: 7 E, vendo todos isto, murmuravam, dizendo que entrara para ser hóspede de um homem pecador.

[7]Lucas 7:39-42

Quando isto viu o fariseu que o tinha convidado, falava consigo, dizendo: Se este fora profeta, bem saberia quem e qual é a mulher que lhe tocou, pois é uma pecadora. E respondendo, Jesus disse-lhe: Simão, uma coisa tenho a dizer-te. E ele disse: Dize-a, Mestre. Um certo credor tinha dois devedores: um devia-lhe quinhentos dinheiros, e outro cinqüenta. E, não tendo eles com que pagar, perdoou-lhes a ambos. Dize, pois, qual deles o amará mais? E Simão, respondendo, disse: Tenho para mim que é aquele a quem mais perdoou. E ele lhe disse: Julgaste bem. E, voltando-se para a mulher, disse a Simão: Vês tu esta mulher? Entrei em tua casa, e não me deste água para os pés; mas esta regou-me os pés com lágrimas, e mos enxugou com os seus cabelos. Não me deste ósculo, mas esta, desde que entrou, não tem cessado de me beijar os pés. Não me ungiste a cabeça com óleo, mas esta ungiu-me os pés com ungüento. Por isso te digo que os seus muitos pecados lhe são perdoados, porque muito amou; mas aquele a quem pouco é perdoado pouco ama. E disse-lhe a ela: Os teus pecados te são perdoados. E os que estavam à mesa começaram a dizer entre si: Quem é este, que até perdoa pecados?

[8]João 8: 4-11 E, pondo-a no meio, disseram-lhe: Mestre, esta mulher foi apanhada, no próprio ato, adulterando. E na lei nos mandou Moisés que as tais sejam apedrejadas. Tu, pois, que dizes? Isto diziam eles, tentando-o, para que tivessem de que o acusar. Mas Jesus, inclinando-se, escrevia com o dedo na terra. E, como insistissem, perguntando-lhe, endireitou-se, e disse-lhes: Aquele que de entre vós está sem pecado seja o primeiro que atire pedra contra ela. E, tornando a inclinar-se, escrevia na terra. Quando ouviram isto, redargüidos da consciência, saíram um a um, a começar pelos mais velhos até aos últimos; ficou só Jesus e a mulher que estava no meio. E, endireitando-se Jesus, e não vendo ninguém mais do que a mulher, disse-lhe: Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te condenou? E ela disse: Ninguém, Senhor. E disse-lhe Jesus: Nem eu também te condeno; vai-te, e não peques mais.

[9] Lucas 9:52-53 E mandou mensageiros adiante de si; e, indo eles, entraram numa aldeia de samaritanos, para lhe prepararem pousada, Mas não o receberam, porque o seu aspecto era como de quem ia a Jerusalém.

[10]João 4:7- Veio uma mulher de Samaria tirar água. Disse-lhe Jesus: Dá-me de beber. Porque os seus discípulos tinham ido à cidade comprar comida. Disse-lhe, pois, a mulher samaritana: Como, sendo tu judeu, me pedes de beber a mim, que sou mulher samaritana? (porque os judeus não se comunicam com os samaritanos). Jesus respondeu, e disse-lhe: Se tu conheceras o dom de Deus, e quem é o que te diz: Dá-me de beber, tu lhe pedirias, e ele te daria água viva.

[11] Lucas 10:25-31  E eis que se levantou um certo doutor da lei, tentando-o, e dizendo: Mestre, que farei para herdar a vida eterna? E ele lhe disse: Que está escrito na lei? Como lês? E, respondendo ele, disse: Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças, e de todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo. E disse-lhe: Respondeste bem; faze isso, e viverás. Ele, porém, querendo justificar-se a si mesmo, disse a Jesus: E quem é o meu próximo?  E, respondendo Jesus, disse: Descia um homem de Jerusalém para Jericó, e caiu nas mãos dos salteadores, os quais o despojaram, e espancando-o, se retiraram, deixando-o meio morto. (…)

[12] Lucas 13:14-15   E, tomando a palavra o príncipe da sinagoga, indignado porque Jesus curava no sábado, disse à multidão: Seis dias há em que é mister trabalhar; nestes, pois, vinde para serdes curados, e não no dia de sábado. Respondeu-lhe, porém, o Senhor, e disse: Hipócrita, no sábado não desprende da manjedoura cada um de vós o seu boi, ou jumento, e não o leva a beber?

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Uma história de resistência no Vale dos Pirineus

Minas de Nossa Senhora do Rosário de Meia Ponte. Atualmente – e desde 1890 -Pirenópolis. Cidade dos Pirineus e das Folias do Divino Espírito Santo. Cidade das feitiçarias, dos Anhangueras e dos espíritos malignos. Cidade do sonho – e da ilusão. Cidade da opulência do Ouro e da miséria da Mineração. Cidade dos massacres e dos milagres. Dos encantos e desencontros. Cidade de folclore intenso e ainda preservado. A decadência econômica sofrida pela região com o fim do ouro de aluvião, já evidenciada em meados do século XVIII, contribuiu para a conservação de hábitos e costumes daquele século na região. De natureza magnífica, o território, antes cuidado e acariciado pelos indígenas que o habitavam, rapidamente se tornou uma área de exclusão e de excluídos. Construída exatamente sobre o entroncamento de paisagens incrivelmente distintas entre si, planaltos, chapadas e planícies, também houve ali um forçoso encontro entre indivíduos amplamente diferentes, em que o humano, graciosamente, repetiu o que a Natureza levara milhares de anos para concluir. Esses indivíduos trouxeram suas experiências e visões de mundo propiciando condições para que, futuramente, fossem construídas as bases do que se tornaria a Cidade de Pirenópolis. Mas para que se materializasse essa união forçada – obrigada mesmo, no caso de escravos negros e cativos da terra – era necessária a construção de um marco, um símbolo que ratificasse o já explícito – que a Cidade de Meia Ponte apenas foi possível pelo contributo de todos e todas que ao longo de quase 300 anos de história por lá viveram em algum momento.

E esse marco fundante – exatamente algo pelo qual apenas se pode realizar por meio dessa união de experiências – é a Igreja Matriz. Construída, ao menos em seu formato inicial que nunca deixou de se transformar, por volta dos anos de 1728 e 1731, a belíssima igreja de Pirenópolis é hoje considerada a mais antiga do território que atualmente conhecemos como Goiás. Edificada de forma a que a qualquer hora do dia tenha sua fachada iluminada, a Igreja Matriz situa-se na parte histórica do centro de uma Pirenópolis que comporta 20 mil habitantes – o que, evidentemente, se amplia enormemente nos períodos de visitação intensa à cidade. A matriz tem alicerces de cantaria (pedra) e as paredes feitas de taipa de pilão (barro socado). Apenas as paredes mais altas das torres são feitas de adobe (tijolo cozido ao sol). Na parte frontal, a taipa é reforçada por uma gaiola de madeira (aroeira), externa e internamente.

Mas para além de toda a beleza exuberante da Igreja, construída nos moldes arquitetônicos de um Brasil Colonial ainda no alvorecer do século XVIII, o mais impressionante é imaginar – ou criar alegorias acerca do feito – de como foi tocada a construção desse templo que tão profundamente deve ter marcado as vidas dos que sobreviveram àquela época. Pelas pedras calçadas do antes chão batido devem ter transitado pessoas de toda sorte. O calçamento da avenida principal – que deve ter surgido durante o período que hora falamos – provavelmente causou reboliço nas jovens senhoritas que por lá caminhavam em busca de um bom casamento – e da estabilidade que apenas dessa forma poderiam obter. As marcas das centenas de mulas que trotavam imponentes pelas ruas da cidade ainda estão lá. Elas eram o motor e o meio de transporte que carregava as diversas quinquilharias e mercadorias que o lucro da mineração financiava. Armas, roupas, espelhos, bebidas, tecidos, lascas de ferro e caixas de pólvora, tudo era vendido a preços exorbitantes e inacessíveis pelos pobres caixeiros-viajantes recém-chegados de Portugal que singravam todo o interior do país. Famílias inteiras da elite caminhavam por aquela rua exibindo os cativos que nesse contexto simbolizavam o poder, o status e a honra de um chefe de família. Também nas escadarias da Igreja era onde se encontravam os esquecidos daquele período – órfãos, bêbados e famintos conseguiam o mínimo necessário à sua sobrevivência apelando para a decadente e sempre insuficiente caridade cristã. A vida pulsante das cidades do interior do país nesse momento girava em torno de suas avenidas principais e ao destaque inegável e central que as Igrejas possuíam durante o período colonial – e que em muitos locais ainda não deixaram de ocupar. A Igreja Matriz de Pirenópolis deve ter, e continua, sem dúvida, a povoar o imaginário de todos e todas que por ela passam. Seja em visitas rápidas de um ou dois dias, ou em estadias de toda uma vida, o papel central que desempenham ainda é evidente.

Ao longo de todo o interior do país é possível perceber que a própria construção dessas edificações religiosas representa formas de resistência ao trabalho cativo. Negros e indígenas tiveram na própria duração e beleza centenária das Igrejas a sua desforra. Em cada pedaço de pedra batida, em cada pilar erguido e em cada santo esculpido, o sofrimento e a enorme contribuição das populações aprisionadas dessas regiões devem ser buscados e entendidos. Diversos crônicos atestam as várias influências – inclusive arquitetônica e estilisticamente – que as culturas africanas e indígenas tributaram à beleza de nossas igrejas. Ao embutirem em projetos de brancos que os escravizam marcas de suas vivências, as classes oprimidas dessa sociedade reinterpretaram e resignificaram o conceito de religiosidade que o grupo hegemônico do Brasil Colonial lhes impingia. E ao entender o conceito de religião que os oprimia, se tornaram ainda mais religiosos. Religiosos a sua maneira. Religiosos de uma forma ainda mais intensa que seus opressores. Verdadeiramente religiosos. Em um mundo de opressão criaram as mais belas expressões de fé de um Brasil desigual e injusto. Combateram o preconceito e a estigmatização – ao menos em ideal e em vontade – utilizando a única língua que todos e todas são suscetíveis ou atingíveis – a arte que liberta, a arte que subverte.

Invocamos a arte criada por escravos – negros e indígenas – com a clara intenção, e um sentimento do fundo do peito, de que apenas ao entendermos a contribuição dos invisibilizados de seu tempo é que poderemos entender o desenrolar não só da história brasileira, mas também do combate a toda forma de opressão que ocorreu e ainda ocorre em solo tupiniquim. Oprimidos e oprimidas também resistem à opressão ao resignificar formas de ver o mundo impostas por setores hegemônicos da sociedade ao incluir, mesmo que confusamente e na penumbra, as visões de mundo que o mundo oficial lhes diz que são indignas e menores. Trazemos à baila pequenas cidades históricas do interior de um Brasil quase esquecido, e suas belas igrejas, para que brademos em alto e bom som, que toda dor pode ser suportada apenas se sobre ela puder ser contada uma história. Uma história de resistência. O próprio nome dado à atual cidade de Pirenópolis – Cidade de Meia-Ponte- é talvez uma indicação de que ainda não foi concluída uma real união dos diversos setores que, em diversos casos, ainda não abriram mão de privilégios que ocupavam durante a construção da Igreja Matriz de Meia- Ponte. Apenas concluiremos essa ponte quando a vida urbana – e todos os preconceitos antigos que subjazem em suas ruas e becos – efetivamente se tornar um indicio de uma democracia e de uma vivência renovadas.

Por Edson de Sousa

Verdes contradições

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A Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, começou deixando claro que não há espaço para a discussão do tema em meio a mais recente crise do capitalismo financeiro e seus desdobramentos. As negativas impostas por chefes de estado europeus e pelo presidente americano deixam claro que sustentabilidade e crise econômica não podem caminhar lado a lado: é necessário abrir mão da sustentabilidade em tempos de incerteza, pois aqui não há um casamento entre capitalismo e desenvolvimento sustentável que implique uma união na felicidade e na tristeza. Antes mesmo da morte, já estão separados.

“O problema com seu plano B é que não temos um planeta B para aplicá-lo”

Estão separados porque jamais puderam caminhar juntos, ao menos quando se pensa desenvolvimento sustentável de forma ampla. É certo que o capitalismo pode ser “verde”, mas um capitalismo verde implica, necessariamente, exclusão. Garantir uma produção sustentável para satisfazer os desejos de consumo de americanos e europeus é utopia. Seria impossível satisfazer a demanda por bens como eles são atualmente demandados dentro de um modelo de sustentabilidade que requer uma profunda mudança nos padrões de consumo e produção. A ideia de desenvolvimento que hoje pauta as agendas governamentais é uma ideia de desenvolvimento centrada no desenvolvimento do capital e não da pessoa humana.

Para esse modelo desenvolvimentista, o limite da sustentabilidade é a possibilidade do lucro. A preservação do meio ambiente só é garantida até o ponto no qual é lucrativa ou não apresenta ameaça para o crescimento econômico, o que inclui a possibilidade de tornar a “sustentabilidade” em fator de agregação de valor e, consequentemente, de exclusão: o ecologicamente correto vira bem de luxo. Para esse modelo, o que é possível em termos de sustentabilidade é a criação de mecanismos de compensação dos danos causados pelas industrias. Mecanismos de mercado que não diminuem a devastação e nem garantem o direito ao meio ambiente saudável de comunidades afetadas pelo processo irresistível de desenvolvimento do capital. É o que ocorre, por exemplo, no mercado de carbono, quando empresas prosseguem poluindo, afetando a vida de pessoas que se encontram dentro do espaço que é atingido por suas atividades (que, muitas vezes, é o espaço global), e que, para “compensar”, investem em longínquos lugares para obtenção de créditos que são, em verdade, licenças para poluir. Transfere-se o encargo de uma população para outra, sem sequer reduzir a emissão de gases estufa, já que “a prática depredadora e poluidora do sistema industrial não se modifica, uma vez que, para uma grande indústria poluidora, economicamente é mais compensador e barato continuar a poluir e comprar créditos de carbono nos países em desenvolvimento, do que diminuir suas emissões ou investir em tecnologias limpas”.

Além disso, a busca pela “sustentabilidade” por empresas e governos vira justificativa para o exercício do poder discricionário sobre comunidades vulneráveis que se encontram no caminho do desenvolvimento do capital. Na falta de algum argumento legal que possa encobrir as razões políticas, o fundamento de remoções de comunidades, por exemplo, vai para o suposto dano que elas vêm causando em ecossistemas, sem nem ao menos apresentar possibilidades para compensar esses danos ou considerar as vidas que ali existem. Essa preocupação ambiental inexiste quando o assunto é a construção de empreendimentos imobiliários como o Setor Noroeste em Brasília que mesmo ao degradar área de proteção ambiental, ocasionando contaminação de lençóis freáticos e assoreamento de córregos e rios, diz ser o primeiro bairro sustentável da região. Triste ironia.

E esses são apenas os problemas estritamente ambientais da sustentabilidade. Ela requer muito mais para que seja uma real sustentabilidade, e os governos e as indústrias bem sabem disso. Porém, governos de países desenvolvidos e em desenvolvimento vêm deixando claro que não irão dar qualquer passo que signifique uma mudança radical na forma como as relações entre economia, meio ambiente e sociedade são hoje pautadas.

O atual modelo desenvolvimentista, assim como o modo de produção que o embasa, trás diversas consequências para (não)fruição de direitos. A crescente exclusão gerada pela acumulação de riquezas priva mais de dois bilhões de pessoas de direitos básicos e mantém outros 3 bilhões em condições de vida nada satisfatórias (recebendo menos que um salário mínimo por mês, ou 330 dólares).  São seres humanos que têm o direito à alimentação, saúde, moradia, educação e ao meio ambiente negados ou precarizados em nome da manutenção de um modelo de organização social que privilegia a super-inclusão de uns poucos, ao mesmo tempo que dá as costas para super-exclusão de muitos outros. E isso só se agravou com a crise financeira de 2008. Desde então, como bem disse o sociólogo Silvio Caccia Bava, há uma percepção generalizada pela sociedade de que os governos obedecem aos bancos e nãos aos eleitores, transferindo para o sistema financeiro privado enormes aportes de recursos públicos às custas da redução dos direitos individuais e sociais.

Pessoas, não lucro.
Parcelas da sociedade civil já se organizam para protagonizar um contra-movimento que combate os modelos de produção e de globalização que hoje nos são impostos. A Cúpula dos Povos é o espaço onde movimentos de todo o mundo que lutam por uma outra economia, por um outro modelo de desenvolvimento, se encontram e articulam iniciativas. No entanto, ainda são amplamente ignoradas, quando não criminalizadas, tal qual ocorre com o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra em nosso País.

A Rio+20, assim como qualquer outra Conferência das Nações Unidas que busque debater o tema da sustentabilidade, estará fadada ao contínuo fracasso caso não enfrente a questão da forma como ela deve ser verdadeiramente abordada. Pensar a sustentabilidade requer repensar a forma como as relações econômicas estão estruturadas atualmente. A economia é/deveria ser um campo pautado por uma razão instrumental, apartada dos demais espaços sociais nos quais se desenvolvem sociabilidades e a própria vida?  Como já escrito em outro texto deste blog (A Economia da Redenção), é necessário pensar a economia como política, como efetivação de direitos, como expressão de correlação de forças sociais e como ponto de composição de subjetividades. Pensar a sustentabilidade requer superar a atual crise atravessada pelo capitalismo financeiro, e essa superação só será possível através de uma mudança profunda que questione e transforme o atual modelo, enfrentando de frente “os atuais donos do poder”.

O Machismo Feminino

O garçom traz a conta, a mulher faz um gesto de tirar a carteira da bolsa porém, antes que ela consiga sacar algo o homem murmura em tom de gentleman: -eu pago.

Esta é apenas uma entre as diversas ‘’gentilezas’’ masculinas que se enraizaram culturalmente e perduram durante muitos anos. Abrir a porta do carro, sempre pagar a conta, fazer o pedido, ter a iniciativa … são alguns clichês da etiqueta masculina que escondem uma discussão importante.

Tais comportamentos refletem o ideário machista que resulta em uma opressão conservadora insistente em ter a mulher como frágil, incapaz e submissa ao homem. Essas conclusões podem parecer exageradas mas, na verdade, essa discussão está longe de ser irrisória.

Mesmo assim, paradoxalmente, não vou me ater a discutir essencialmente o comportamento opressor machista, suas causas e práticas. Refiro-me ao mesmo comportamento, porém sob a perspectiva do oprimido.

A ideologia machista instaurada e incessantemente reproduzida tem pelas mulheres o seu objeto e sujeito ao mesmo tempo. A reprodução do discurso opressor machista se dá, talvez exatamente com a mesma força, entre as mulheres.

A estrutura disciplinar machista instaurada é fonte do poder simbólico dos homens em relação às mulheres e da violência simbólica sofrida pelas mesmas. Essa estrutura ao encontrar maneiras pelas quais os objetos de sua repressão reproduzam esse discurso cria um sistema de vigilância opressor pelo qual, mulheres reprimem mulheres que fogem dos padrões comportamentais estabelecidos por essa política. É o principal instrumento pelo qual o machismo se estrutura. Mulheres, sem consciência da opressão que sofrem, reproduzem discursos de condenação de condutas que fogem à etiqueta machista pré-estabelecida de submissão e tolhimento de suas subjetividades.

Os exemplos dessa reprodução são inúmeros e se expressam de várias formas. É possível citar a forma como mulheres reproduzem os estereótipos criados para o controle de seu comportamento sexual. Estereótipos esses que se propõem a classificar mulheres em categorias, as que se adéquam a uma abstração ideal ao machismo e as que

não o fazem. Nesse contexto, Putas e Santas são fabricadas a todo momento. Mulheres são marcadas e julgadas, inclusive entre si, por essas abstrações.

O caso de Monique, participante de um famoso reality show estuprada em rede nacional, causa uma reflexão a esse respeito. Era perturbadora a forma como mulheres reproduziam um discurso de que ‘’ ela estava se oferecendo, não fez nada do que não quisesse ter feito’’ ou ‘’quem mandou beber demais e se oferecer tanto’’. Culpabilizar mulheres vítimas de estupro baseando-se em seu comportamento é algo que serve à cultura machista em sua mais alta expressão. Devemos ensinar homens a não estuprar ao invés de querermos ensinar mulheres a não serem estupradas.

A ideia de que o homem sempre deve pagar a conta, e aquele que não o faz é um grosseirão mal-educado, é um exemplo de como a ‘’etiqueta masculina’’, prezada pelas mulheres, pode estar imersa na ideologia machista. Delegar esse dever aos homens significa submeter a mulher a uma estrutura de poder simbólico, é dizer que a mulher por ser incapaz deve, por natureza, delegar a responsabilidade de suas contas aos homens.

Peço que não me tenham como um feminista exacerbado e pão duro. O movimento feminista luta por igualdade acima de tudo. Para tanto, é importante que todas as mulheres tomem consciência da repressão e, de forma consciente e conjunta, possam parar de reproduzir discursos que as tem como objeto de opressão. O ideário machista deve ser aniquilado primordialmente, entre o grupo feminino. Isso só seria possível de forma conjunta. Daí surge a importância de toda mulher se afirmar feminista. O feminismo nasce como instrumento de emancipação considerando-se que, como afirma o trecho citado por Paulo Freire:

A consciência do oprimido encontra-se ‘’imersa’’ no mundo preparado pelo opressor; daí existir uma dualidade que envolve a consciência do oprimido: de um lado, essa aderência do opressor, essa ‘’hospedagem’’ da consciência do dominador (seus valores, sua ideologia, seus interesses), e o medo de ser livre e, de outro, o desejo e a necessidade de libertar-se. Trava-se assim, no oprimido, uma luta interna que precisa deixar de ser individual para se transformar em luta coletiva: Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão.( FREIRE apud GADOTTI, 1989, p.68)

Por Aurélio Faleiros

Direitos Humanos vistos com humanos reais

O grupo do PET-Dir hoje conta com duas atividades da extensão universitária, ambas na Cidade Estrutural. Uma delas é uma oficina de teatro, com foco nos direitos humanos e na realidade da Estrutural, utilizando-se do Teatro do Oprimido para tanto. A outra é uma oficina sobre Direitos Humanos, que ocorre todo sábado pela manhã.

É uma oficina que não tem um formato de aula, justamente por se caracterizar como extensão universitária. Ali é um espaço de diálogo e construção dos estudantes universitários com os moradores da comunidade. Levamos os temas, as abordagens e as propostas, mas nunca de maneira fechada. Pelo contrário, buscamos uma horizontalidade, no sentido de deixarmos todos muito confortáveis para expor suas ideias, opiniões e sugestões, de mesma forma que frisamos que todos estamos lá para mudar (de ideias, opiniões e sugestões).

Por meio de dinâmicas, textos, músicas e vídeos nós temos buscado levar a reflexão sobre a realidade dos direitos humanos na Cidade Estrutural. O que são Direitos Humanos? Como eles têm sido violados? Como podemos garanti-los? Essas são algumas perguntas que motivam a caminhada nesse processo de aprendizado mútuo e de intervenção. Nos primeiros encontros conversamos sobre Direito e Política – o que um tem a ver com o outro –, sobre os Direitos Humanos e sobre como estes estão todos correlacionados.

É incrível como pessoas mais humildes, com menos experiência acadêmica, apresentam tantos pontos de vistas interessantes, que nos surpreendem pela correlação que têm com a realidade – com a realidade real e não com a realidade que nós pensamos que conhecemos pelos livros, pela televisão e pela fala dos professores. A vivência dessa gente é tão viva, tão real e tão no-mundo que nos surpreende na nossa prepotência irrefletida, no nosso pseudo-conhecimento. Nessa relação é que nós, futuros juristas, vemos o mundo – mundo sobre o qual o Direito trata. É por isso que o Direito não pode vir de fora do mundo, de um metamundo, de um além-mundo.

Ali, naqueles diálogos mundanos, levamos uma “porrada” da complexidade do mundo. Não é possível encaixotar as realidades, os conhecimentos, os direitos, para entendê-los e, muito além disso, utilizá-los. Como podemos defender a melhora das condições da educação brasileira, bem como a melhora das condições de trabalho e do salário dos professores quando a real população brasileira não tem acesso à educação, tem condições de trabalho extremamente precárias e baixíssimos salários? Não condiz com a realidade deles defender poucos alunos em sala de aula e quadros brancos em vez de quadros de giz em prol da saúde do professor. A maioria dos trabalhadores, como os pedreiros – exemplo trazido por um participante da oficina –, tem condições de trabalho totalmente insalubres, além de jornadas de trabalho bastante pesadas.

Com essa simples reflexão percebemos como todos os Direitos andam de mão dada. Os direitos dos professores não podem destoar dos direitos dos estudantes, nem da sociedade como um todo. A causa LGBTTT não pode estar afastada da luta racial, nem da luta agrária, nem dos demais movimentos urbanos. Todas as lutas por direitos são lutas pelo Direito – pelo real Direito que não se distancia nunca da Justiça Social.

Da mesma forma, a Oficina nos deu a percepção de que as diversas áreas dos Direitos Humanos a que sempre nos referimos não podem se desvincular. Não há como garantir segurança pública sem educação. Não existe direito à moradia sem direito do trabalhador. Não há direito à saúde sem direito à alimentação. Assim, a violação de um direito se mostra como uma violação a um rol de direitos.

Conversando sobre o caso do menino que era mantido acorrentado pela avó em casa, enquanto ela saía para trabalhar[1], podemos ver como a ausência do Estado viola direitos básicos do ser humano. A falta de creches públicas, a falta de segurança, a falta de assistência social, tudo isso é uma violência que leva cidadãos a medidas extremas, violando direitos de outros seres humanos.

Dessa maneira, comprova-se como a questão do Direito e dos Direitos Humanos estão intrinsecamente ligados às Políticas Públicas. Isso tem sido pauta de muitos debates na oficinas, de modo que temos questionado como essas Políticas Públicas têm sido dirigidas, fiscalizadas e implementadas. E qual o papel do cidadão nesse contexto? É o voto a cada quatro anos apenas (aqui no DF não temos eleições municipais)? Será que o cidadão não tem outras formas de fazer valer os seus direitos?

Temos identificado o valor das mobilizações populares e a importância do acesso à Justiça. Temos visto as variadas formas que os cidadãos têm de garantir seus direitos, intervindo para a elaboração e implementação de Políticas Públicas que atendam às suas necessidades, fazendo com que suas opiniões sejam ouvidas e consideradas pelos administradores públicos. Enfim, surge o debate sobre o Direito a partir de seus próprios destinatários, que devem ser também sua fonte. É assim que o Direito nasce do espaço público, democraticamente, de forma livre e igualitária, ou seja, nasce da “Rua”, como diria Lyra Filho.

É por cada uma dessas reflexões que se reconhece o valor da extensão universitária não só na formação do profissional, mas para atingir-se a função da própria Universidade, que é pensar e transformar a realidade. Com a extensão fazemos isso juntamente com a comunidade, a partir de suas demandas e de seu esforço. É o conhecimento à serviço da vida.

Por Augusto César Valle

“Quem se importa com os professores?”

Por Ana Paula Duque

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Deflagrada no último dia 17, a greve dos professores já conta a adesão de mais de 50 Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) do país. Reconhecida como uma das maiores greves docentes dos últimos tempos, mais do que reivindicações pontuais, as demandas se estendem para uma profunda reformulação do plano de carreira e das condições de trabalho, além de insuflar a necessidade de repensar radicalmente o modelo de educação vigente.

Atualmente, o piso salarial de um docente universitário de dedicação exclusiva (regime de 40 horas semanais) é de R$2.872,85. Docentes em regime de 20 horas tem o piso salarial de R$1.597,92.

Segundo acordo firmado ao final do ano passado (Termo de acordo nº 04/2011*) entre o governo federal e o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES), tanto o ministério da Educação quanto o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG) concordaram com uma valorização do piso salarial docente mediante reajuste de 4%, incorporação das gratificações em 13 níveis remuneratórios e revisão do plano de carreira, este último com data limite para 31 de março de 2012, meta esta que não foi cumprida.

Diante desse quadro de profundo descaso com as negociações já firmadas e a falta de abertura do governo para novas negociações que de fato repensem a universidade de maneira estrutural, a greve segue adiante e a cada dia encontra novos reforços.

Com uma duração que ultrapassa 20 dias, a paralisação conta com o apoio de discentes de todo o país. Segundo a Assembléia Nacional dos Estudantes – Livre (ANEL), alunos de 30 Instituições Federais de Ensino deflagraram greve estudantil em solidariedade aos professores. Além disso, existe a possibilidade de, a partir do dia 11 de junho, servidores federais se juntarem à paralisação.

A adesão maciça desses setores à greve mostra o reconhecimento da sociedade frente ao sucateamento das universidades públicas e à insatisfação crescente quanto ao ensino que nos tem sido oferecido (este, indiscutivelmente, cada vez mais distante tão almejado “público, gratuito e de qualidade”).

A greve nada mais é do que um reflexo da priorização do governo no investimento em setores privados em detrimento de uma expansão e melhoria organizada do ensino público.

Programas como o REUNI, que forçaram uma política expansionista desregrada e feita às pressas, com a consequente lotação das salas de aula, falta de laboratórios e estruturas de pesquisa e extensão, além da precarização do trabalho do professor mediante a queda nas condições de trabalho, são parte do problema.

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Outro programa problemático, o PROUNI, ainda que tenha seu mérito ao garantir o acesso de estudantes de baixa renda ao ensino superior, retira do governo sua responsabilidade de garantir a estes uma educação pública e de qualidade. Além de tratar-se de uma maneira de transferir dinheiro público a setores privados, favorecendo a mercantilização da educação. Realocar esses alunos para universidades particulares ao invés de viabilizar formas de acolhê-los em instituições públicas é a marca da ineficiência e descaso do governo no que tange a garantia de acesso à educação do seu povo.

No último dia 5, cerca de cinco mil pessoas se reuniram na Marcha Unificada na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. O ato pretendia dar apoio e visibilidade às demandas dos grevistas. Em ocasião semelhante, num ato pela valorização da educação, manifestantes seguravam uma placa que indagava: Quem se importa com os professores?

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Eu me arrogo o direito de responder: Nós.

Nós, que lutamos pela valorização da educação. Nós, alunos e alunas que entendemos a luta dos professores como nossa. Reivindicamos não apenas acesso, mas reais possibilidades de permanência nas Universidades. Exigimos moradias estudantis, creches e restaurantes universitários, bolsas de pesquisa e extensão, laboratórios estruturados, bibliotecas e salas de aula em condições salubres de uso.

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Diante disso, faço minhas as palavras de Mauro Iasi, professor da UERJ e presidente da ADUFRJ: “Nós não podemos impedir que os exploradores se comportem como tal, da mesma forma que não nos cabe mudar o comportamento de seus aliados e serviçais que hoje no governo implementam o desmonte das políticas públicas, do Estado e, portanto, da Universidade Pública. Mas, podemos e devemos decidir não ser seus cúmplices e dizer em alto e bom tom: se quiserem destruir a Universidade Pública terão que fazer sem nosso consentimento, sem nossa omissão, terão que fazê-lo contra nós e isso não se dará sem luta.**”

 

 

* http://portal.andes.org.br/imprensa/noticias/imp-pri-27430976.pdf

**http://boitempoeditorial.wordpress.com/2012/05/30/a-greve-nacional-dos-professores-das-universidades-federais/

Por uma outra economia: Banco Comunitário Estrutural

ImagemA história da Estrutural é uma história de luta. Primeiro, a luta era pelo direito de permanecer, seguida pelo direito de morar e, agora, é a luta pelo direito de se desenvolver plenamente, com amplo acesso a direitos. E terça (05.06.2012) a comunidade da Estrutural avançou nessa luta: inaugurou o Banco Comunitário da Estrutural.

Fruto da organização da propria comunidade em torno de um objetivo comum, o Banco Estrutural surge como ferramenta para incentivar e financiar o desenvolvimento local. Na boca dos moradores, a fala é uma só: o banco é a possibilidade da realização de projetos e direitos e a esperança de uma Estrutural desenvolvida social e economicamente.

Trabalhando com uma lógica completamente diferente daquela praticada pelas instituições financeiras tradicionais, para o Banco Estrutural pouco importa se o morador que busca um empréstimo tem ou não o nome negativado. Como a comunidade diz, você nunca sabe por qual situação uma pessoa passava no momento em que não conseguiu honrar suas dívidas, afinal, não é levado em consideração pelos Banco tradicionais se você estava doente, por exemplo, o que representa uma impossibilidade aceitável para não pagar seus débitos. Mas para o Banco Comunitário isso importa. A trajetória de vida do morador é fundamental para concessão do crédito, principalmente, o vínculo com a comunidade, já que é ela quem dá a última palavra sobre quem deve ou não deve receber o crédito. A máxima é: vale mais ser um bom vizinho que contribui com a comunidade do que um exímio pagador que nada faz para melhorar a Estrutural.

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Deuzani e Solange, integrantes do Comitê Gestor do Banco Estrutural

É a humanização das relações econômicas. Aqui os desejos não são infinitos e as ações não são tomadas com base em um cálculo utilitarista de maximização dos ganhos. As necessidades devem ser atendidas e as ações devem ser pautadas sempre buscando beneficiar a comunidade como um todo, mesmo que isso signifique não ter lucro. E não ter lucro não é sinônimo de perda ou ausência de ganho, pelo contrário: pode-se não ganhar monetariamente, mas ganha-se em inclusão e em desenvolvimento social, através da melhoria da qualidade de vida dos habitantes e da coletividade. Os juros são quase simbólicos, apenas o suficiente para manter o Banco em funcionamento. O dinheiro para o crédito vem da própria comunidade, de doações e de projetos construídos pelo Banco, como, por exemplo, cooperativas ou feiras solidárias.

Através das linhas de crédito (habitacional, produtivo e de consumo), o Banco Estrutural, para além de garantir o acesso dos moradores ao tão almejado direito ao crédito – negado pelo sistema financeiro nacional -, viabiliza as condições materiais para que eles tenham a possibilidade de encaminhar seus projetos de vida. É claro que o Banco não será a solução para todos os problemas, mas é uma alternativa diante de políticas de redistribuição inexistentes ou insuficientes e de processos que cada vez mais empobrecem as periferias em relação aos centros. Há incentivo para as atividades locais e para que os moradores façam circular a riqueza ali na comunidade, fazendo com que ela permaneça e fomente o desenvolvimento local.

Vale lembrar que não é um desenvolvimento que vem de fora, mas o desenvolvimento levado à frente pelos moradores que, insatisfeitos com a situação na qual se encontravam, não permaneceram de braços cruzados. Conscientizando-se de suas potencialidades lançaram mão de uma forma criativa e inovadora de concretizar direitos a partir de demandas e soluções próprias, ressignificando as relações econômicas por meio de relações que são, antes de qualquer outra coisa, solidárias.

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