Cronos, que devora seus filhos

Por Luisa Hedler   

Cronos é o deus do tempo, mas durante seu reinado todo tempo era negado. Depois interromper o eterno abraço do Céu (Urano) com a Terra (Gaia) com a castração de seu pai Urano, Cronos vivia com medo da profecia que seria deposto por um descendente seu. Por isso, devorava seus filhos e filhas logo que nasciam. O passado, castrado; o futuro, negado. Era o tempo dos animais, do instante, que não se permite história nem mudança, o tempo eterno do brutal e do caótico. Foi só quando Zeus, escondido pro sua mãe quando era bebê, enfrentou o pai, o fez regurgitar todos os irmãos e irmãs e o jogou nas profundezas é que o tempo conseguiu fluir: agora sim, para além do caos brutal foi possível começar a história e se criar o panteão dos deuses do Monte Olimpo – hefesto e seus metais forjados no vulcão, Afrodite e suas intrigas amorosas, Atena e suas técnicas e sabedorias. Tudo com o seu tempo socialmente criado, com sua memória e suas promessas de futuro. Agora sim, há sociedade, e junto com ela, a temporalidade: o nosso fazer do tempo, que guarda o passado e se prepara para o futuro, que se apega a tradições ou proclama inovações a longo prazo. É muito limitada a visão de que o tempo é a passagem de segundos contada no relógio: nós, como seres que se estendem no tempo, construímos relações e durações (como os próprios segundo), convencionamos socialmente se ele anda em linhas ou em círculos, debatemos se ele passa rápido ou devagar, criamos eras para dividi-lo e relógios para medi-lo.

Mas mesmo com tudo isso, estamos longe de sermos senhoras do tempo: das profundezas do tártaro, Cronos ainda nos coloca sua mensagem e ameaça: o tempo ainda devora suas crias, esse escultor de ruínas que transforma o ouro da glória em pó, o maior vigor em fragilidade, a maior das mentes no nada, e a maior das pessoas em fantasmas de memória.

Ave, leitor(a): aquela que vai morrer te saúda.

Porque a cada respiração, a indesejável das gentes chega – dura ou caroável, mas terrivelmente próxima. Próxima porque não é só esse frágil corpo que se esvai nos dias – as mortes de cada dia nos espreitam nas menores coisas. Morremos nós, mas morrem também ideias, sonhos e tempos dentro da vida. É morte uma pessoa amiga que vai embora, a criança que morre com as demandas da vida adulta, uma faculdade que termina, um dia maravilhoso que não volta, um relacionamento que amarga, uma nova máscara para qual a outra precisa cair…

Morri assim tantas vezes, sem velório e flores, às vezes sem um suspiro sequer- comecei a estagiar – morte rápida, como um tiro, do que era antes – e precisei sair do PET – morte de suplício, lenta, doída, que inda me deixa um fantasma agonizante. Falar de tempo e morte, nesses ternos, não é só uma elocubração para mim: também é suspiro de confessionário.

Do mito disse Campbell que é uma forma muito peculiar de fazer interagir com nosso ambiente, sociedade e um quê da psique humana que nos faz representar ludicamente os caminhos percorridos ao longo da vida – e, mais do que isso, formas de conseguir lidar com os mais profundos recônditos de nossa própria escuridão. Assim nos falam Cronos e Zeus não só da inevitabilidade das mortes, mas também que criar um passado e futuro é nossa forma de morrer sem ser engolido.

Para os finais, temos o passado da memória, para não andarmos perdidas de nossas origens, para o bem e para o mal – mas também o passado precisa se neutralizar no perdão,  para seguir em frente e fazer as feridas cicatrizarem. Há a promessa para fazer o futuro, o horizonte para orientar o caminho do tempo, essa promessa de algo além do que está sob nossos pés – mas também precisamos questionar, desligar o futuro e poder olhar o vazio do fim. Com tudo isso, o fim chega – seremos devoradas ao fim e disso não há dúvida. Mas as riquezas nas formas da despedida nos dizem tanto que transfigura o morrer. Morrer para virar memória ou esquecimento, morrer pelo futuro ou para fazer voltar um passado, morrer de repente ou como se viveu, significar esse fim de mil formas dentro do projeto que tentamos construir para o nosso ser (sem sê-lo, diriam os existencialistas, e esse vazio dentro de mim me obriga a concordar).

Fazemos o nosso fim, e quanto ao meu, quero fazer coro ao poeta que diz que é preciso

Sentir como quem olha,
pensar como quem anda,
e quando se vai morrer,
lembrar-se que o dia morre,
e que o poente é belo
e é bela a noite que fica.
Assim é.
Assim seja.
 

*Achados pelo texto, mas perdidos por citações ABNT: François Ost, Joseph Campbell, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa, o costume dos gladiadores de roma e as mentes sem autoria que pensaram e viveram seus mitos.

A construção do comum

Por João Victor Fiocchi   

“Persigo la imagen que hice de mí   
y siempre estoy en deuda conmigo mismo”   

Antonio Miranda   

01Talvez seja a sensação de que a graduação passa muito rápido. Talvez seja porque passa mesmo. Talvez seja porque, quando a gente se muda, faz-se necessário encaixotar as coisas e depois revolver essas mesmas caixas. Talvez seja porque, quando revolvemos essas caixas, não sejam só as caixas que são revolvidas. Nós também somos. A questão é que, seja pelo acidente de uma mudança, ou pela nostalgia de uma rememoração, você passa a relembrar de desde quando entrou na faculdade, ou ainda desde momentos anteriores, e acaba se reencontrando consigo mesmo. Alguém em quem você se reconhece, mas já não corresponde par-e-passo a quem é hoje. As vivências te alteraram. E essas formas de rememorar, em algum sentido, são você prestando testemunho a si mesmo de quem foi. É uma conversa que se tem consigo mesmo.

E é exatamente sobre isso que esse texto busca tratar. É sobre como esse expor-se às vivências faz toda a diferença nesse processo.

Nesse sentido é que me parece, portanto, que, se deslocamos o foco para o ambiente de uma universidade, extensão e movimento estudantil são espaços privilegiados a favorecerem esse tipo exposição de que falei anteriormente. Por maiores que possam ser as críticas a este ou àquele espaço, há uma ideia trazida por Antonio Negri que me diz muito. O autor, em um livro-entrevista, afirma: “Conheci a militância, e para mim não existe verdade fora do ‘comum’, fora daquilo que pode pertencer a todos e verificar-se na linguagem, na cooperação e no trabalho. Uma verdade é uma ação coletiva, seres que militam juntos e que se transformam. Eu vejo a ação como algo que constitui a comunidade, que produz a substância de nossa dignidade e de nossa vida.[1]“.

Obviamente, e isso Negri deixa claro em diversos momentos da entrevista, que essa visão em muito carrega sua experiência de vida – que passa por sua educação social-comunista, por seu período no exílio na França para evitar a prisão, por seu retorno à Itália, culminando em sua prisão e por seus recorrentes reencontros durante a vida com a noção de comunidade.

Mas, em certo ponto, não seria isso inescapável? Não é essa Erlebnis, essa experiência vivida, um resultado da nossa interação com o dado e o solo sobre o qual construímos tudo quanto construímos? Para o autor, é relacionado a esse modo de pensamento que a ação se configura como critério de verdade. Se aqui nomearemos isso de verdade ou astúcia da razão, o debate está em aberto – além de não ser o ponto central a que se propõe lidar esse texto. Relevante, nesse momento, é dizer das relações que se tem com o dado, e como isso molda as relações que travamos em nossas vidas – e, por que não dizer, dos reflexos que se desdobram na própria produção de conhecimento.

Não é sugerir, vale lembrar, que a vivência seja sempre previamente moldada pelo dado, obliterada por ele. É dizer que aquela necessita da relação do sujeito com este para dar-se. Nem poderia tal sugestão ser categoricamente feita, uma vez que o filósofo italiano traz toda uma concepção de educação como um embate contra as tradições.

02Isso nos faz voltar à extensão e ao movimento estudantil. Essa é uma das possibilidades que esses espaços podem oferecer de uma maneira que não encontra similares em outros ambientes da Academia. É um permitir expor-se a outras vivências que põem em choque tradições. É educação, portanto. E é educação transformadora porque vem de um agir coletivo daquelas/es que estão juntas/os. São singularidades entretecidas. São multidão.


[1] NEGRI, Antonio. De Volta – Abecedário Biopolítico. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro; São Paulo: Editora Record, 2006, p. 41/42.

A ditadura da opressão na moda

Por Matheus de Paula   

Que atire a primeira pedra aquele(a) que nunca julgou uma pessoa com base em suas vestimentas no momento ou seu modo de se vestir. Fazemos isso constantemente, ainda que de forma inconsciente. Entretanto, mal sabemos, ou, no mínimo, não nos damos conta, que estamos reforçando a prática do preconceito e da opressão no meio da moda. Sim, a moda também é condicionada por valores e ditames sociais.

01Há toda uma construção acerca da estética do corpo masculino e feminino, que acaba por gerar, como consequência, o modo como “homens e mulheres de verdade” devem se vestir (como se houvesse explicações plausíveis para definir o que é um homem e uma mulher “de verdade”).

É comum associarmos peças de vestimenta a determinado gênero. Por exemplo, o vestido é uma peça estipulada para ser tipicamente feminina, assim como a cueca samba canção, no âmbito masculino. E é, a partir dessas coerções implícitas, que o preconceito encontra aberturas para se manifestar.

A muitas pessoas é estranho ver um homem vestindo um short curto, ou uma mulher vestindo uma bermuda grande e larga. Quando se deparam com uma cena dessas, é comum que já façam associações bastante preconceituosas acerca da orientação sexual da pessoa. “Esse aí é veado! Olha só essa roupa!” ou “Essa aí é sapata, hein…” são formas de expressão típicas desse preconceito arraigado na sociedade.

02

Sem hipocrisias nem tampouco falsos moralismos, é usual que esse tipo de situação ocorra. O preconceito chega a ser tamanho que se usa a expressão “moda gay“, distinguindo a vestimenta de “homens e mulheres normais” da de “homens e mulheres homossexuais“.

Há, além da imposição heteronormativa na moda, a imposição machista também. É comum ouvirmos de muitos, e até mesmo de muitas mulheres, que “a mulher de verdade é sexy sem ser vulgar“. Resumindo: a mulher que queira e use vestidos, shorts ou saias curtas, por exemplo, é considerada vulgar, vadia, entre outros belos nomes que a descrevam dessa forma.

O ponto no qual quero chegar é: até quando essas ditaduras da heteronormatividade e do machismo irão se manifestar na moda? O que digo, em síntese, é: até quando o preconceito e a opressão vão continuar existindo também no mundo da moda?

Que nada nos defina, que nada nos limite, que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância“. Sábias palavras de Simone de Beauvior em seu “La Force de I’Age (“A Força da Idade”). O que necessitamos é disso: liberdade. Liberdade para sermos como desejamos ser e nos manifestarmos como bem entendemos, desde que não fira a individualidade e a livre-manifestação do outro. Afinal, ainda compartilho da seguinte filosofia: meu corpo, minha vestimenta, minha sexualidade. Seu respeito.

03Em defesa de uma moda livre de preconceitos.

A cultura da ação-pós-reação

Por Luma Marques   

Estava hoje pensando sobre o que escrever para o blog, com medo que resultasse em alguma coisa abaixo do selo de qualidade petiano. No início, pensei em falar sobre o cuidado repentino do outro, sobre como milhões se comovem e  agem em prol do próximo nos momentos chocantes que são televisionados, mas como são frios e inertes nos casos  fatídicos do dia-a-dia, naquele esquema do “não tenho nada a ver com isso”.

Contudo, resolvi mudar de tema. Acho que esse – apesar de não ser tão tocante – serve, também, para uma reflexão.

Acho incrível a política brasileira de ação-pós-reação. Refiro-me aqui a cotidiana maneira de só reagir em relação a  algum caso grave após este dito caso acontecer. Não que este tema seja relacionado apenas ao incêndio da boate em  Santa Maria, também o é, mas também é possível citar diversos outros. Começo primeiramente, relembrando os  deslizamentos na região serrana carioca. Acontecem todos os anos, estamos carecas de ver notícias do tipo no verão  chuvoso e então mesmo assim, sempre há aquela notícia de implementação de políticas que irão “salvar” as pessoas que  sofreram com a situação adversa. Realço aqui, a tragédia do ano de 2011, ano em que morreram 911 pessoas, porém, só  depois disso é que medidas como a instalação de alarmes, realocação das famílias foram feitas, medidas mínimas de  prevenção e acho até meio óbvias para uma região serrana.

Outro caso mais recente, como já foi citado, é o de Santa Maria. É muito triste o que aconteceu com aqueles jovens, foi  realmente uma câmara de gás ao estilo nazista. Mas, saindo dessa parte de quem é o culpado ou não pelo incêndio,  podemos nos perguntar: “Poxa, cadê a fiscalização nessa boate? ’’ Ela teve seu interior reformado e alterado, nada  mencionado a nenhuma autoridade – supostamente responsável – pela fiscalização e continuou funcionando normalmente até acontecer a catástrofe. O que mais revolta é que o incêndio acontece ontem e amanhã estão no Brasil inteiro fazendo uma “varredura” fiscalizadora nas boates. Só aqui em Brasília foram quatro boates que nem licença de  funcionamento tinham[1], sendo que são super conhecidas e quistas como as melhores para baladas noturnas.

Três delas estão no Gilberto Salomão – o espaço comercial mais conhecido de Brasília – e ninguém fazia ideia que elas  não tinham licença?! Isso só pode ser prova da falta de comprometimento e a corrupção que está na cara de todos, mas  isso é um tema para um próximo capítulo.

O que quero reiterar é esse costume horroroso que se tem de só agir após as catástrofes, após as mortes acontecerem.  Outro exemplo é a tal da comanda. Após o ocorrido no Rio Grande do Sul, começou-se uma discussão a respeito do fim  da comanda nos bares, boates e restaurantes, por atrapalharem a saída das pessoas dos locais em caso de perigo tal qual como foi na Boate Kiss. A vereadora Séfora Mota (PRB) protocolou na Câmara da capital do Rio de Janeiro, um projeto  de lei que proibiria o uso de tal objeto[2], para tentar evitar o que aconteceu.

É com essa reação retardatária que se mantém o costume de chorar pelas vítimas para depois prevenir. É preciso mudar isso, que se finde tal costume e que se lute contra essa corrupção e conluio que fazem com se reafirme a conduta.

Isso é, sim, sobre você

Por Liana Cajal   

Quando eu era pequena, em algum desenho falaram uma frase que me marca até hoje: seria muito melhor que a semana durasse só sábado e domingo, para o final de semana ter longos cinco dias. Cinco dias sem obrigações, nos quais sua única preocupação seria brincar e se divertir! Seguindo essa mesma lógica, será que deveríamos pensar assim em relação ao Carnaval? Seria bom ter 360 dias carnavalescos e cinco dias para guardarmos?

Transfóbicos se transvestem. Homofóbicas pegam mulheres. Homofóbicos, homens. Só as mulheres que dão na primeira noite prestam. Ninguém é de ninguém, todo mundo é de todo mundo. Ninguém pode julgar ninguém. É a concentração da hipocrisia da normatividade. Tudo aquilo que pregam durante o ano não vale nada. Isso é bom?

Parece bom. Os grupos invisibilizados ganham espaço. Será?

A festa reproduz toda opressão; mas, agora, a violência é disfarçada pela folia.

Nas festas do troca, alegremente, se reproduz os estereótipos de homens e mulheres; prazerosamente se afirma que se travestir não passa de uma brincadeira. Todos os homens tem barba, cara de mau e falam grosso. As mulheres ostentam peitões, maquiagem e roupa curta, se equilibrando em cima de saltos que as deixam quinze centímetros mais altas. A brincadeira acaba, destroca-se, a normalidade se reestabelece. Tudo aquilo é forçado, é visto como ridículo; assim como os/as travestis são vistos/as nos dias em que nem tudo pode. É esse o discurso que legitima a violência. Quando não se leva sério a individualidade de uma pessoa e se força o encaixe em um padrão. Um padrão limitador que, na tentativa de uma inclusão forçada, se torna cruel.

A putaria é liberada. Mas, a liberdade é sabotada por uma cultura machista. Mulheres enfrentam o desafio de se divertir entre passadas de mãos na bunda, puxões de cabelos e beijos forçados. Homens são obrigados a honrar sua natureza de machões; se negarem fogo, são automaticamente desclassificados para viadinhos. Inverte-se a possibilidade de livre manifestação a partir do momento que se proíbe o dizer não. A graça da putaria está, exatamente, no respeito. Quando as pessoas envolvidas se permitem desfrutar os prazeres de seus corpos em uma posição de igualdade. Se há desigualdade, é uma desigualdade consensual, há acordo sobre a subordinação. A partir do momento que se impõe a putaria, sem que esta lógica do respeito esteja presente, consensuamos e propagamos a cultura do estupro. A hipocrisia carnavalesca prega que ninguém é de ninguém, quando, na verdade, repete-se a lógica de todos os dias: as mulheres são dos homens. São subordinadas aos homens.

É essa cultura que naturaliza o desejo sexual do homem e retrai o da mulher. É essa cultura que ensina um comportamento adequado para mulher se prevenir, mas que não ensina o homem a hora de parar. É essa cultura que culpabiliza a vítima pelo estupro, deixando o agressor impune. É dessa cultura que eu tenho nojo. É essa cultura que forma, especialmente hoje, minha dor. Que me coloca em uma situação de impotência diante da dor da outra. É por essa cultura que eu digo: isso é, sim, sobre você.

Que você não precise sentir a dor, mas, que toda a dor existente te mobilize. Que adquiramos o estranho costume da Suécia[1]. Que nosso choro tenha forças para se transformar em grito. Que nosso grito seja um grito de basta. Que ele cale as opressões. Que seja um grito de liberdade. Se o ano só começa depois do Carnaval, eu não quero que meu ano comece. Não enquanto começar o ano signifique legitimar as opressões.

Porque o mundo não governa a si mesmo

Por Juliana Thomazini   

01Os mistérios da mente sempre intrigaram a humanidade. As possibilidades sobrenaturais de descobrir mais sobre o que se esconde nas partes inacessíveis de nossos próprios cérebros atiçam a curiosidade de alguns e a incredulidade de outros. O filme “O mundo imaginário do Doutor Parnassus” propõe a oportunidade de entrar no espelho e ver dentro dele um mundo diferente, comandado pela mente do Doutor Parnassus, mas determinado pela imaginação de quem o visita, sem preocupações com o possível ou o plausível.

A trupe do show itinerante compreende o poder da mente do Doutor, mas quando resgatam um estranho no caminho, a veracidade do que acontece atrás do espelho é questionada.

“Tony: Se o Dr. Parnassus pode mesmo controlar a mente das pessoas… Então, por que ele não está governando o mundo? Por que se dar ao trabalho de manter esse showzinho de segunda?

Anton: Não é um showzinho, ele não quer governar o mundo. Ele quer que o mundo governe a si mesmo.”

A existência de tão grande poder não utilizado para obter vantagens próprias parece absurda para Tony Shepherd[1], a estranha figura resgatada da forca no meio de uma ponte. O vislumbre da possibilidade de dominar o mundo, subjugando os outros e tendo para si tudo o que deseja é sedutor, e a não concretização desse sonho, que, na concepção do personagem, todos e todas devem sonhar, não é aceitável para uma mente que cobiça cada vez mais poder e destaque. Não é difícil achar exemplos de pessoas que, assim como Tony, acreditam ser tão mais espertas e esclarecidas que os outros. E, exatamente por esse motivo, entendem ser justificável deterem de forma unilateral o controle sobre as 02decisões que afetam a coletividade. Vários são os artifícios usados para obter-se e manter-se no poder. Não são raros os com pretensões a déspotas esclarecidos, detentores (em seus entendimentos) de conhecimento mais apurado que as outras pessoas, o que daria a eles o direito, e porque não o dever, de “guiá-las”. O mais alarmante é quando esse conhecimento “superior” é aceito sem ser questionado ou como inquestionável.

Por esse motivo, também, não é fácil aceitar que as pessoas são realmente capazes de governar a si próprias. A ideia de autonomia se torna implausível dentro de um contexto hierarquizado, no qual cada um assume a função e as responsabilidades que a ela são atribuídas, atuando apenas de acordo com o que é determinado por uma “autoridade” como seu papel e nada mais. É muito mais fatigante lidar com um grande espaço de liberdade, no qual se pode escolher, assumindo a responsabilidade por seus atos e decisões. Especialmente numa sociedade individualista, na qual cada um tem apenas seus próprios interesses em vista.

As consequências e até mesmo a real dimensão de seus atos é muitas vezes difícil de assumir. Assim como os mafiosos russos do filme que, quando confrontados com uma representação da violência, que exercem cotidianamente, de forma banal dentro do sistema de repressão implementado legitimamente pelo Estado, correm pra barra da saia da mamãe, muitas pessoas não percebem (ou preferem não perceber) os reflexos que suas ações têm para os outros. E é essa falta de alteridade que impede o poderoso de perceber que quem interessa não é só ele e seus desejos, e sim toda uma comunidade que abrange anseios muito maiores que apenas ilusões de poder.

“Garantimos a legalidade na hora de derrubarmos as portas de gente que não gostamos.”


[1] Curiosamente, a palavra Shepherd, quando traduzida para o português, significa “pastor”. No filme, Tony é o fundador de uma instituição de caridade voltada para o auxílio de crianças. Essa atividade poderia dar ao sobrenome realmente o sentido de guia, alguém que vela pela vida e alma de outros, não fossem os motivos torpes escondidos na fachada de ajuda humanitária.