A perpetuação da resposta punitiva

                                           Por Aurélio Faleiros   

O filme os Miseráveis nos transfere para o contexto do Estado Francês tipicamente liberal do início do século XIX. O liberalismo exacerbado que marcou esse momento histórico tinha como principal característica o não intervencionismo do estado nas relações sociais. Este mesmo Estado não-intervencionista, no entanto mostrava toda sua força quando se tratava de utilizar veementemente o poder estatal para reprimir condutas incriminadas e perseguir seus autores.  Inúmeras são a arbitrariedades cometidas pelo punitivismo exacerbado desta época.

look-downA história do prisioneiro 24601 exemplifica esse contexto. Jean Valjean ficou dezenove anos preso e submetido a trabalho escravo por ter roubado um pedaço de pão na tentativa de salvar o filho de sua irmã que passava fome. ‘’Five years for what you did, the rest because you tried to run, Yes 24601!’’ , dizia Javert, o agente estatal. A pena estipulada para Valjean fora visivelmente desproporcional, o que revela o caráter punitivista do estado na época. Esse ideal de Justiça punitiva é adotado afinco pelo inspetor Javert que persegue Jean durante toda narrativa. Javert é um grande adorador do sistema penal, apesar de sua origem pobre, acredita no ideal imposto de justiça punitiva e o adota de forma absoluta.

Dois séculos passados, os Estados e suas legislações adotaram princípios que pretendiam complexificar a noção de justiça por meio da garantia de direitos fundamentais e humanos. No entanto, países como o Brasil, por exemplo, estão longe de efetivar essas garantias. A arbitrariedade da ação da nossa polícia e as violações a direitos fundamentais a que submetemos nossos prisioneiros são evidentes.  O Brasil promove execuções e encarceramentos em massa como principal e única forma de combate ao crime. Temos uma polícia extremamente violenta e penitenciárias extremamente lotadas. Há também a incriminação de uma gama enorme de condutas, fruto de uma cultura que vê como única solução de conflitos a criminalização das relações sociais.

Observa-se então a reafirmação de uma cultura punitivista, apesar dos esforços garantistas que se têm visto desde o surgimento do Estado burguês. Porém o que chamou minha atenção e de certa forma me levou a escrever este texto não é a continuação dessa cultura desde o Estado liberal até então, mas a ampla adesão desse modelo pelas classes populares que se apresentam, ao mesmo tempo, como principal alvo da repressão.

Essa semana, o réu Mizael foi condenado a 20 anos de prisão a serem cumpridos inicialmente em regime fechado pelo assassinato da ex-namorada Mércia, o caso teve grande comoção nacional e ocupou grande espaço na mídia. Não farei análise a respeito da condenação de Mizael, o que me chamou atenção durante essa semana foi a maneira com que a população pedia, acompanhava e torcia para a condenação do réu à maior pena possível, viam como única forma de justiça o maior tempo possível de permanência do réu dentro da prisão. Dessa forma, se assemelham a Javert, acreditam cegamente que a punição pode trazer uma sociedade mais justa.

Não é difícil deparar-se com discursos que afirmam que no Brasil há um grande problema de impunidade (embora já tenhamos 550mil presos), que as penas não são cumpridas devidamente, que falta polícia, que lugar de ‘’bandido’’ é na cadeia e que direitos humanos são apenas para humanos direitos.  Todo esse discurso demonstra um conservadorismo que, aos moldes do contexto liberal que em se passa a história de Valjean, vê num sistema penal cada vez mais duro e implacável a solução para o problema da criminalidade. Mas o que me intriga é: hoje em dia o que está por trás desse discurso? Quem na verdade vêm pautando um sistema penal implacável como única forma de resolução de conflitos?

É indispensável que se mencione o papel da mídia nesse contexto. Primeiramente, há uma opção política de desumanizar sempre a figura do ‘’criminoso’’(que por si é uma abstração), colocá-lo como uma criatura sub-humana, essencialmente má e indigna de quaisquer direitos. Essa imagem construída acerca da figura do ‘’bandido’’ está presente em todas as espécies de programas de TV, noticiários, internet, em todo aparelho midiático. Inúmeros são os programas de ‘’caça aos bandidos’’ no Brasil, esses programas reproduzem um estereótipo de um criminoso ‘’demonizado’’ para o qual a única solução seria o encarceramento, pelo maior período possível. Incita-se, dessa forma, uma dicotomização alienante da sociedade entre os ‘’homens de bem’’ e os ‘’bandidos perigosos’’.

Ao mesmo tempo em que se demoniza a figura do criminoso, cria-se um ideário de heroi para o estado. Enaltecem-se as figuras dos policiais, promotores e juízes como heróis nacionais que vêm para limpar as ruas da escória social, representada pelos ‘’bandidos’’.

02A rede midiática brasileira exerce ainda um papel alienante por propositalmente não incitar qualquer debate acerca da eficácia desse sistema punitivo que nos é posto. Desta forma, apresenta-se o encarceramento em massa como única solução e a violência policial como necessária. O debate sobre direitos humanos é também extremamente secundarizado nesse processo. Opta-se por não demonstrar a realidade das penitenciárias brasileiras, as execuções realizadas pela polícia são mascaradas de forma que as mortes de civis aparecem sempre como ‘’justificáveis’’.

Essas premissas estão a serviço de um governo que opta claramente por uma política de segurança pública baseada no endurecimento do sistema penal. Trata-se do abandono completo a políticas públicas de prevenção de crimes para a adoção de um modelo extremamente rígido e desvinculado de outras políticas públicas, não se enxerga o problema da violência como um problema essencialmente social. A opção por esse modelo acontece muitas vezes porque ele, apesar de não lidar com a questão da violência urbana em sua amplitude, apresenta mais resultados (muitos deles falaciosos) a curto prazo o que aumenta a adesão popular. Essas medidas são ainda mais economicamente viáveis aos governos do que seria uma política pública integrada no combate a criminalidade.

Ainda que esse modelo de segurança pública esteja intrinsecamente relacionado a medidas higienistas e a processos de criminalização de grupos específicos, estes mesmo grupos ainda acreditam nessas políticas como melhor forma de combate a violência. O Brasil possui uma população carcerária exorbitante, uma polícia que promove execuções sumárias e continua sendo um país que apresenta um grande problema de segurança pública. Ainda que a ineficácia do nosso modelo esteja comprovada, há um conservadorismo e uma ausência de vontade política que secundarizam o debate público acerca da questão contribuindo para a perpetuação de uma cultura punitivista por meio de sua constante reprodução que acaba por culminar na adesão por quem, ao mesmo tempo, mais é afetado por essas medidas, os pobres.

UnB para quê?

Por Diego N. Nardi 

Israel Pinheiro insistentemente alardeou Juscelino sobre as inconveniências de uma Universidade em Brasília. Não entendia como poderia existir uma no meio do deserto, e, principalmente, não lhe agradava a ideia de estudantes próximos ao novo centro político do País. Aceitava reservar um terreno fora da cidade, para no futuro, quem sabe, fosse erguida uma Universidade.

Felizmente, por essas conjunturas do destino, não prevaleceu nem a opinião de Israel Pinheiro, nem de tantos outros opositores que ora defendiam a inexistência da Universidade de Brasília, ora tentavam influenciar na sua vocação. Lúcio Costa pensou Brasília com sua Universidade e manteve-se atento às investidas contrárias ao seu projeto. Conforme escreveu certa vez, a nova capital deveria ser “cidade própria ao devaneio intelectual, capaz de tornar-se, com o tempo, além de centro de governo e administração, um foco de cultura dos mais lúcidos e sensíveis do País”.

Concebera-se a Universidade enquanto elemento fundante e indissociável da cidade, pensando-a enquanto verdadeira UniverCidade. Ao lado de Lúcio Costa, estavam Darcy Ribeiro e Anísio Texeira que percorriam os gabinetes do governo, entre o Ministério da Educação, a Presidência e o Congresso, garantindo que a Universidade de Brasília não fosse apenas um projeto, mas realidade. Em 15 de dezembro de 1961, aproveitando-se do caos instaurado pela renúncia de Jânio Quadros, Darcy Ribeiro fez com que a Lei nº 3.998, responsável pela criação da Fundação Universidade de Brasília, fosse aprovada.

Em 9 de abril do ano seguinte, a UnB recebia seus primeiros estudantes. Cinquenta anos se passaram desde então e, afastada de seu projeto original, a UnB por longos anos pareceu agonizar diante das investidas das quais foi alvo. Foram-se os anos de chumbo, veio a redemocratização, mas a pergunta feita por Darcy parece estar longe de ser respondida e alcançada. Afinal, universidade para quê? Ao projetar e construir nossa Universidade, Darcy e Anísio pareciam dar vida à revolucionária resposta que pretendiam apresentar ao menos enquanto pontapé para os questionamentos futuros que não deveriam parar de surgir diante de tal pergunta.

A Universidade de Brasília não é uma universidade qualquer. Fora pensada enquanto “a casa da consciência crítica em que o Brasil se explicaria e encontraria saída para seus descaminhos”. Em oposição à fragmentação, vislumbrou-se a possibilidade de construir uma instituição capaz de vincular as partes e o todo, “capaz de apreender os objetos nos seus contextos, nas suas complexidades, na sua totalidade”. Sua fundação anunciou uma guinada. Não mais enquanto um complemento adicional da paisagem urbana, ou mera instituição de pesquisa e educação: ergueu-se a UnB enquanto instituição indispensável à democracia e com projeto político próprio que deveria ser definido pela e para comunidade da qual fazia parte.

Morada do pensamento complexo com dupla tarefa: na capital federal, cabia-lhe (e ainda cabe) mais que qualquer outra Universidade pensar e problematizar o Brasil em sua totalidade, ao mesmo tempo que deveria (e deve) exercer sua função enquanto instituição fundante de Brasília, articulando-se ao/problematizando o quebra cabeça urbano de inúmeras contradições que se revelou ter construído no planalto central.

A busca incessante pela liberdade através de uma consciência crítica foi o motivo principal que fez com que as armas tentassem calar suas vozes. Abriu-se uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar a profícua subversão que se construía a partir dela, e foi nessa ocasião que alertou-se para o “perigo” que a UnB representava ao Brasil, tornando-se “fator de indisciplina, de intranquilidade, para toda população de Brasília e quiçá para toda a população brasileira”. Felizmente, sua indisciplina colheu frutos e, apesar dos percalços, foi protagonista do processo que levou os militares de volta aos quartéis, abrindo espaço para que o povo ocupasse as ruas.

Em seus tempos iniciais, a UnB era uma ideia autêntica e revolucionária, não seguiu protocolos nem modelos importados. O mundo todo olhava ansioso para a experiência que se realizava no meio do deserto: a construção de uma Universidade diferente de qualquer outra e que já nascia não com amarras deterministas, mas com o papel claro de ser instituição indispensável ao Brasil em sua missão de “produzir na cidade inovadora uma gente nova de mentalidade renovada, sem nenhum complexo de inferioridade colonial e sem nenhuma subserviência classista”.

A UnB parecia surgir enquanto Pós-Universidade[1]: o modelo milenar criado no medievo para combater o dogmatismo que emergia dos conventos já havia deixado o  espírito contestador que marcara sua origem, tornando-se obsoleto e impotente diante de uma realidade cada vez mais fragmentada e complexa, cada vez mais dominada por uma razão instrumental. Se outrora foram elas o berço de revoluções, na década de 50 – e hoje a situação não é distinta, apesar de alguns lampejos nessas últimas décadas, como a de 60 – as universidades já haviam incorporado o papel de conventos modernos: desejavam e desejam ser autoridade única na produção e divulgação do conhecimento, tratando-o não enquanto ferramenta para emancipação, mas enquanto mercadoria capaz de fornecer privilégios e acentuar ainda mais as desigualdades que deveriam ser por elas combatidas.

Passados 50 anos, a UnB luta para não se tornar mais do mesmo. Tarefa difícil. Uma onda conservadora obstinada a privar a universidade de seu papel democrático parece emergir em todos os espaços através de discursos que optam por não refletir sobre problemas reais que afetam não apenas a Universidade, mas Brasília e, principalmente, o Brasil. Opção que se identifica em ataques à construção de uma gestão pautada por um modelo horizontal visando efetiva democracia participativa na Universidade, em ataques à uma universidade sem muros e universal, à construção de um ensino não hierárquico, ao engajamento político transformador e, principalmente, à construção de uma universidade verdadeiramente brasileira e que busca e constrói um conhecimento autônomo e ético.

Felizmente, ao menos a partir das experiências que vivi nesses quase seis anos de UnB, se crescem o número de atores que se identificam com o discurso da neutralidade ou do conservadorismo político, em outras palavras, de um conhecimento não engajado, descomprometido com a transformação social e pela manutenção das relações de opressão e poder na sociedade, multiplicam-se os coletivos e atores engajados em pensar não apenas a proposta política revolucionária que a UnB trouxe consigo, mas pensar e lutar por uma Universidade que seja encarada como elemento indispensável à democracia, onde a realidade é objeto de crítica e matéria para transformação, onde a sociedade não seja mero contexto, mas elemento constituinte sem o qual a Universidade não possui razão de ser e onde o pensamento complexo tem abrigo contra os ataques do pensamento único.

Enfrentar constantemente a pergunta Universidade para quê?, é reafirmar “o papel da universidade como a Casa em que a Nação brasileira se pensa a si mesma como problema e como projeto”, como palco onde a sociedade, sobretudo através dos movimentos sociais,  torna-se protagonista da produção de um conhecimento emancipador que a todo momento busca questionar e transformar a ordem estabelecida, afinal a vocação da Universidade, desde sua origem, é incitar a indisciplina revolucionária através de uma postura “indagativa de autoquestionamento”.  E é justamente a falta de autoquestionamento que devemos evitar, sob o risco de permanecemos obsoletos e incapazes de oferecer qualquer contribuição, possibilitando que o sonho de Israel Pinheiro e não o de Lúcio Costa, Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro ganhe vida.

“Nossa tarefa é o Brasil, mas nossa missão fundamental para que o Brasil se edifique para seu povo é a liberdade”.  Darcy Ribeiro.


[1] Expressão usada pelo Prof. Cristovam Buarque no texto “Universidade e Democracia”, disponível em: http://www.revistasusp.sibi.usp.br/pdf/revusp/n78/08.pdf.

Retire-se, por favor.

por Diego Nardi

R$ 400.000,000 reais é quanto custa um terreno de aproximadamente 400m² na Cidade Estrutural. Um preço razoável para o mercado imobiliário de Brasília, mas quando se pensa que se trata de uma das comunidades mais vulneráveis economicamente do Distrito Federal, a razoabilidade já não é tão evidente. E os preços elevados não se limitam à propriedade imóvel: bens de consumo, desde vestuário, passando por eletrodomésticos e alimentação possuem maior custo na localidade, fator que leva os moradores a não consumirem ali, mas nos comércios das cidades vizinhas. Dinheiro que sai para dificilmente voltar. E essa não é uma realidade apenas da Cidade Estrutural. Ela se repete nas demais capitais do nosso País e em outras cidades pelo mundo.

Em tempos nos quais o foco central das lutas de resistência na cidade é a remoção realizada pelo Estado através da desapropriação das terras, um processo mais lento e mais perverso vem afetando a vida de comunidades que durante décadas lutaram pelo direito de morar no centro espacial da cidade e não em sua periferia. Asfalto, luz, escolas, hospitais, saneamento, transporte e outras intervenções no espaço dessas comunidades acabam por ocasionar a valorização dos imóveis naquela localidade, elevando, principalmente, o valor dos aluguéis. Ao longo do tempo, o custo de vida se eleva e os moradores que, na maior parte das vezes, não obtiveram um aumento em sua renda suficiente para permanecerem ali, são forçados a se retirarem para buscar moradia em áreas afastadas, sem qualquer infra-estrutura.

 “Boa parte das pessoas que moravam aqui quando cheguei, já não moram mais e em alguns anos a Estrutural será um bairro só para pessoas ricas”, foi o que me disse uma das moradoras enquanto tomávamos um café. Perguntei se ela sabia o que era gentrificação, mas ela disse que não, quando, na verdade, poucos minutos antes, havia explicado para mim toda a lógica dos acontecimentos que mencionei acima. Primeiro o direito à moradia, depois a realização do direito à uma vida digna, com acesso aos serviços públicos essenciais e, sem que se perceba, o que se conquistou através de uma árdua luta é retirado aos poucos pelas regras de um mercado que está para além do controle daquela comunidade.

Urbanização pela urbanização não é melhoria, é privação. “Vamos urbanizar a comunidade!” é uma declaração tácita de remoção quando não acompanhada de políticas públicas que impeçam ou amenizem a especulação imobiliária ali. Na maior parte das vezes, a urbanização é ação externa impulsionada por um grupo privilegiado que quer amenizar a desvalorização de seus imóveis em decorrência da proximidade de comunidades economicamente pobres. No longo prazo, pode originar uma troca completa da população do bairro “urbanizado”, que deixa de ser oposição para ser complementariedade. Exemplos não faltam: Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, Paris, Londres, Nova Iorque e por aí vai.

Obrigado, Gentrificação! Os impostos cresceram, proprietários aumentaram, etnicidades dispersaram… agora nós somos os melhores jogadores do bairro!

Urbanização não pode estar disvinculada da participação direta da comunidade nem de políticas de planejamento que impeçam os efeitos já mencionados. Alternativas não faltam: Community Land Trust (http://neweconomicsinstitute.org/content/community-land-trust-pamphlet), Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), além de iniciativas que buscam fortalecer a economia local dessas comunidades, assim como seus vínculos sociais, possibilitando um aumento da riqueza ali que corresponda a um aumento da renda dos moradores, os quais não serão forçados a deixarem suas moradias.

Infelizmente, a realidade das intervenções no espaço urbano das nossas cidades está marcada pelo que podemos chamar de urbanização perversa, que almeja não a garantia de uma vida digna aos moradores da comunidade urbanizada, mas o enriquecimento dos proprietários dos imóveis lindeiros à comunidade e a remoção invisível que o aumento do custo de vida acarreta. Consequencia que poucos assimilam no curto prazo, percebendo quando já é tarde. Não se engane, intervenções que anunciam melhoria de vida na favelas e comunidades economicamente vulneráveis de nossas cidades têm se revelado um verdadeiro cavalo de tróia, minando o direito à cidade por dentro. E essa realidade só se alterará quando trocarmos (como bem falou Francisco Bosco hoje em sua coluna no jornal O Globo) “o modelo de cidade-butique, de megaeventos, que pode se tornar [e, infelizmente, já é] megaexcludente, por um projeto que não faça da população de baixa renda moeda de troca barata, a ser realocada, desapropriada ou convidada a se retirar pela gentrificação”.

Verdes contradições

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A Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, começou deixando claro que não há espaço para a discussão do tema em meio a mais recente crise do capitalismo financeiro e seus desdobramentos. As negativas impostas por chefes de estado europeus e pelo presidente americano deixam claro que sustentabilidade e crise econômica não podem caminhar lado a lado: é necessário abrir mão da sustentabilidade em tempos de incerteza, pois aqui não há um casamento entre capitalismo e desenvolvimento sustentável que implique uma união na felicidade e na tristeza. Antes mesmo da morte, já estão separados.

“O problema com seu plano B é que não temos um planeta B para aplicá-lo”

Estão separados porque jamais puderam caminhar juntos, ao menos quando se pensa desenvolvimento sustentável de forma ampla. É certo que o capitalismo pode ser “verde”, mas um capitalismo verde implica, necessariamente, exclusão. Garantir uma produção sustentável para satisfazer os desejos de consumo de americanos e europeus é utopia. Seria impossível satisfazer a demanda por bens como eles são atualmente demandados dentro de um modelo de sustentabilidade que requer uma profunda mudança nos padrões de consumo e produção. A ideia de desenvolvimento que hoje pauta as agendas governamentais é uma ideia de desenvolvimento centrada no desenvolvimento do capital e não da pessoa humana.

Para esse modelo desenvolvimentista, o limite da sustentabilidade é a possibilidade do lucro. A preservação do meio ambiente só é garantida até o ponto no qual é lucrativa ou não apresenta ameaça para o crescimento econômico, o que inclui a possibilidade de tornar a “sustentabilidade” em fator de agregação de valor e, consequentemente, de exclusão: o ecologicamente correto vira bem de luxo. Para esse modelo, o que é possível em termos de sustentabilidade é a criação de mecanismos de compensação dos danos causados pelas industrias. Mecanismos de mercado que não diminuem a devastação e nem garantem o direito ao meio ambiente saudável de comunidades afetadas pelo processo irresistível de desenvolvimento do capital. É o que ocorre, por exemplo, no mercado de carbono, quando empresas prosseguem poluindo, afetando a vida de pessoas que se encontram dentro do espaço que é atingido por suas atividades (que, muitas vezes, é o espaço global), e que, para “compensar”, investem em longínquos lugares para obtenção de créditos que são, em verdade, licenças para poluir. Transfere-se o encargo de uma população para outra, sem sequer reduzir a emissão de gases estufa, já que “a prática depredadora e poluidora do sistema industrial não se modifica, uma vez que, para uma grande indústria poluidora, economicamente é mais compensador e barato continuar a poluir e comprar créditos de carbono nos países em desenvolvimento, do que diminuir suas emissões ou investir em tecnologias limpas”.

Além disso, a busca pela “sustentabilidade” por empresas e governos vira justificativa para o exercício do poder discricionário sobre comunidades vulneráveis que se encontram no caminho do desenvolvimento do capital. Na falta de algum argumento legal que possa encobrir as razões políticas, o fundamento de remoções de comunidades, por exemplo, vai para o suposto dano que elas vêm causando em ecossistemas, sem nem ao menos apresentar possibilidades para compensar esses danos ou considerar as vidas que ali existem. Essa preocupação ambiental inexiste quando o assunto é a construção de empreendimentos imobiliários como o Setor Noroeste em Brasília que mesmo ao degradar área de proteção ambiental, ocasionando contaminação de lençóis freáticos e assoreamento de córregos e rios, diz ser o primeiro bairro sustentável da região. Triste ironia.

E esses são apenas os problemas estritamente ambientais da sustentabilidade. Ela requer muito mais para que seja uma real sustentabilidade, e os governos e as indústrias bem sabem disso. Porém, governos de países desenvolvidos e em desenvolvimento vêm deixando claro que não irão dar qualquer passo que signifique uma mudança radical na forma como as relações entre economia, meio ambiente e sociedade são hoje pautadas.

O atual modelo desenvolvimentista, assim como o modo de produção que o embasa, trás diversas consequências para (não)fruição de direitos. A crescente exclusão gerada pela acumulação de riquezas priva mais de dois bilhões de pessoas de direitos básicos e mantém outros 3 bilhões em condições de vida nada satisfatórias (recebendo menos que um salário mínimo por mês, ou 330 dólares).  São seres humanos que têm o direito à alimentação, saúde, moradia, educação e ao meio ambiente negados ou precarizados em nome da manutenção de um modelo de organização social que privilegia a super-inclusão de uns poucos, ao mesmo tempo que dá as costas para super-exclusão de muitos outros. E isso só se agravou com a crise financeira de 2008. Desde então, como bem disse o sociólogo Silvio Caccia Bava, há uma percepção generalizada pela sociedade de que os governos obedecem aos bancos e nãos aos eleitores, transferindo para o sistema financeiro privado enormes aportes de recursos públicos às custas da redução dos direitos individuais e sociais.

Pessoas, não lucro.
Parcelas da sociedade civil já se organizam para protagonizar um contra-movimento que combate os modelos de produção e de globalização que hoje nos são impostos. A Cúpula dos Povos é o espaço onde movimentos de todo o mundo que lutam por uma outra economia, por um outro modelo de desenvolvimento, se encontram e articulam iniciativas. No entanto, ainda são amplamente ignoradas, quando não criminalizadas, tal qual ocorre com o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra em nosso País.

A Rio+20, assim como qualquer outra Conferência das Nações Unidas que busque debater o tema da sustentabilidade, estará fadada ao contínuo fracasso caso não enfrente a questão da forma como ela deve ser verdadeiramente abordada. Pensar a sustentabilidade requer repensar a forma como as relações econômicas estão estruturadas atualmente. A economia é/deveria ser um campo pautado por uma razão instrumental, apartada dos demais espaços sociais nos quais se desenvolvem sociabilidades e a própria vida?  Como já escrito em outro texto deste blog (A Economia da Redenção), é necessário pensar a economia como política, como efetivação de direitos, como expressão de correlação de forças sociais e como ponto de composição de subjetividades. Pensar a sustentabilidade requer superar a atual crise atravessada pelo capitalismo financeiro, e essa superação só será possível através de uma mudança profunda que questione e transforme o atual modelo, enfrentando de frente “os atuais donos do poder”.

Por uma outra economia: Banco Comunitário Estrutural

ImagemA história da Estrutural é uma história de luta. Primeiro, a luta era pelo direito de permanecer, seguida pelo direito de morar e, agora, é a luta pelo direito de se desenvolver plenamente, com amplo acesso a direitos. E terça (05.06.2012) a comunidade da Estrutural avançou nessa luta: inaugurou o Banco Comunitário da Estrutural.

Fruto da organização da propria comunidade em torno de um objetivo comum, o Banco Estrutural surge como ferramenta para incentivar e financiar o desenvolvimento local. Na boca dos moradores, a fala é uma só: o banco é a possibilidade da realização de projetos e direitos e a esperança de uma Estrutural desenvolvida social e economicamente.

Trabalhando com uma lógica completamente diferente daquela praticada pelas instituições financeiras tradicionais, para o Banco Estrutural pouco importa se o morador que busca um empréstimo tem ou não o nome negativado. Como a comunidade diz, você nunca sabe por qual situação uma pessoa passava no momento em que não conseguiu honrar suas dívidas, afinal, não é levado em consideração pelos Banco tradicionais se você estava doente, por exemplo, o que representa uma impossibilidade aceitável para não pagar seus débitos. Mas para o Banco Comunitário isso importa. A trajetória de vida do morador é fundamental para concessão do crédito, principalmente, o vínculo com a comunidade, já que é ela quem dá a última palavra sobre quem deve ou não deve receber o crédito. A máxima é: vale mais ser um bom vizinho que contribui com a comunidade do que um exímio pagador que nada faz para melhorar a Estrutural.

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Deuzani e Solange, integrantes do Comitê Gestor do Banco Estrutural

É a humanização das relações econômicas. Aqui os desejos não são infinitos e as ações não são tomadas com base em um cálculo utilitarista de maximização dos ganhos. As necessidades devem ser atendidas e as ações devem ser pautadas sempre buscando beneficiar a comunidade como um todo, mesmo que isso signifique não ter lucro. E não ter lucro não é sinônimo de perda ou ausência de ganho, pelo contrário: pode-se não ganhar monetariamente, mas ganha-se em inclusão e em desenvolvimento social, através da melhoria da qualidade de vida dos habitantes e da coletividade. Os juros são quase simbólicos, apenas o suficiente para manter o Banco em funcionamento. O dinheiro para o crédito vem da própria comunidade, de doações e de projetos construídos pelo Banco, como, por exemplo, cooperativas ou feiras solidárias.

Através das linhas de crédito (habitacional, produtivo e de consumo), o Banco Estrutural, para além de garantir o acesso dos moradores ao tão almejado direito ao crédito – negado pelo sistema financeiro nacional -, viabiliza as condições materiais para que eles tenham a possibilidade de encaminhar seus projetos de vida. É claro que o Banco não será a solução para todos os problemas, mas é uma alternativa diante de políticas de redistribuição inexistentes ou insuficientes e de processos que cada vez mais empobrecem as periferias em relação aos centros. Há incentivo para as atividades locais e para que os moradores façam circular a riqueza ali na comunidade, fazendo com que ela permaneça e fomente o desenvolvimento local.

Vale lembrar que não é um desenvolvimento que vem de fora, mas o desenvolvimento levado à frente pelos moradores que, insatisfeitos com a situação na qual se encontravam, não permaneceram de braços cruzados. Conscientizando-se de suas potencialidades lançaram mão de uma forma criativa e inovadora de concretizar direitos a partir de demandas e soluções próprias, ressignificando as relações econômicas por meio de relações que são, antes de qualquer outra coisa, solidárias.

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A “liberdade” que violenta

Por Diego Nardi e Guilherme Crespo

Recentemente, na Bahia, o poder legislativo estadual propôs projeto de lei que proibe a contratação com verbas públicas de artistas que degradem a imagem da mulher. Não foram poucos os que bradaram sobre a inconstitucionalidade da lei estadual por exercer, indiretamente, restrição da liberdade de expressão. Não é de se admirar que boa parte das críticas venha da industria fonográfica e do entertenimento; de certa forma, eles reconhecem em si promotores dos discursos que a lei busca combater.

Embricamentos e interesses econômicos de lado, a liberdade de expressão tem sido nos últimos tempos a grande base das argumentações que tentam deslegitimar qualquer tentativa de banir da esfera pública práticas que perpetuam uma violência sobre outros que está para além da manifestação física; tais tentativs buscam de combater o plano simbólico da violência, aquela agressão que existe e se desenvolve, consciente ou inconscientemente, no plano das relações sociais por intermédio, principalmente, do discurso, criando crenças que fazem com que o indivíduo se posicione no espaço social segundo critérios e padrões do discurso dominante. [1]

É evidente que não cabe ao Estado exercer juízo sobre a moral dos indivíduos ou, até mesmo, julgar, com bases morais, o conteúdo de uma canção, por exemplo. Fazer isso seria extrapolar sua esfera de atuação limitando, sem qualquer sombra de dúvidas, a garantia à liberdade de expressão que é essencial à democracia. Porém, juízo moral é estabelecido com base na distinção entre o que é certo e o que é errado, distinção essa que não é homogênea para todos os indivíduos que vivem em uma mesma comunidade. A partir do momento no qual o Estado passa a pautar sua conduta de restrição das liberdades dos indivíduos com base em fundamentos morais, estamos diante de um problema que, de fato, é contrário à liberdade de expressão.

Porém, coibir manifestações que carregam em si juízos de valores que atentam contra a dignidade de indivíduos ou grupos de indivíduos não é o mesmo que coibir manifestações que carregam em si juízos de valores que discordam da atuação política de indivíduos ou grupos de indivíduos. A diferenciação não é das mais difíceis, mas, infelizmente, a violência do discurso que não deixa marcas físicas ainda é deixada de lado, sendo caracterizada como algo incapaz de gerar efeitos verdadeiramente negativos. Assim, não é raro encontrar aqueles que abominam episódios de agressão doméstica mas, ao mesmo tempo, não veem nada demais em uma música que diz que mulher tem apenas o direito de sentar e ficar caladinha.

É claro que a violência física possui um grau de afetação muito mais explícito que o discurso sexista veiculado por uma canção, afinal, em última instância, a agressão que deixa marcas busca suprimir a existência do outro indivíduo da forma mais drástica possível, eliminando a vida.

Se por um lado a canção não deixa traços claros de violência, por outro ela legitima condutas que deixam; reproduz crenças e valores que acabam por exercer uma poderosa influência negativa na construção das identidades às quais indivíduos são forçados a se adequarem em decorrência das pressões sociais. Em relação às mulheres, trata-se de um estereótipo que vê nela senão um objeto sexual com responsabilidades essencialmente maternas e domésticas, não sendo possível negar as consequências nefastas da atitude sexista que as coloca nessa situação.

Para além das músicas, exemplos não faltam. Talvez o mais evidente seja a da cerveja que associa o produto ao corpo da mulher enquanto meio para satisfação masculina, levando a reificação aos extremos. Escolha uma loira, negra ou ruiva; elas estão aí para serem consumidas, nasceram para servir e dar prazer. Devassa é o adjetivo que as define.

Para a maioria das pessoas, trata-se apenas de uma cerveja e nada mais que isso.

A construção social de gênero e papeis sociais atribuídos a cada um desses gêneros, por se estabelecerem quase à margem de uma clara percepção racional desse processo, acabam por naturalizarem um padrão de normalidade, onde o exemplo mais claro é a mulher dona-de-casa e o homem provedor. Embora muitos advoguem que essa divisão é esdrúxula e já foi superada, notamos que essa representação se estende para além dos espaços privados de convivência; o simbólico, que condiciona o espaço público da mulher apenas à exploração do seu corpo (de diversas formas), acaba por formar a base para uma cultura machista que acredita ter o domínio sobre esse corpo – colocado à venda ou disponível ao uso a qualquer tempo. E não parece difícil estabelecer uma relação direta entre posse do corpo e violência física concreta que mulheres sofrem todos os dias. Expressões artísticas que reproduzem essa lógica da posse apenas reforçam, corroboram, legitimam toda uma cultura que mata mulheres (no espaço privado, socialmente ou de fato).

Quando discursos deixam de deslegitimar tão somente ações ou opiniões passando a deslegitimar o indivíduo em decorrência de características que fazem parte de sua identidade, estamos diante de discursos de violência. Tais discursos, destrutivos, quando não pregam a supressão do indivíduo, pregam a violência contra ele de modo a tornar sua existência menos digna.

É evidente que esses discursos não encontram espaço na liberdade de expressão, uma vez que não contribuem para o fluxo comunicativo, já que buscam excluir indivíduos/grupos de indivíduos dos espaços públicos. Ou seja, há intenção de limitação da liberdade do outro e aqui vale o velho brocardo sobre os limites da liberdade, afinal só há liberdade com o outro, jamais sem ele.

Assumir um padrão heteronormativo de normalidade tanto para as mulheres que acabarão submetidas a esse padrão quanto para aquelas que o desafiarão é muito custoso, ao mesmo tempo em que afeta de forma direta o Direito. Ora, se vivemos sob um paradigma do direito constitucional democrático, onde a mudança e o direito à diferença são fundamentais para própria sobrevivência desse sistema, experiências culturais que reforcem valores que objetificam a mulher e que, portanto, a desumanizam (contribuindo para a naturalização dessa condição), são no mínimo antidemocráticas, antijurídicas, inconstitucionais. E se é papel do Estado democrático de direito, através de seus espaços institucionais resguardar o que é mais caro à Constituição e o que a fundamenta, parece não ser só um absurdo argumentar contra intervenção estatal, como é essencial que o Estado não se mantenha passivo no tocante a essas manifestações.

Assim, projetos de lei que busquem impedir, de alguma forma, a reprodução das diversas formas de expressão e perpetuação da violência encontram amparo não apenas na Constituição, mas, antes, no papel transformador e emancipador que deve ter o Direito ao lidar com as questões sociais que lhe são apresentadas. Combater a desigualdade de gênero é assumir a razão de ser do constitucionalismo democrático em sua essencialidade, possibilitando que os indivíduos possam ter pleno domínio sobre seus projetos de vida, os quais não podem estar previamente determinados por convenções sociais ou ameaçados por contextos de violência.

Sobre Roteiros, Direito e Cinema

Quando Assurbanipal reuniu diversos contos e lendas sumérias formando a Epopéia de Gilgamesh em VII a.C., nascia o modelo fundamental que iria guiar o desenvolvimento de narrativas ao longo da história, tanto no ocidente como no oriente. O poema épico mesopotâmico é a primeira Arquitrama da qual se tem notícia: trata da história do rei sumério, único protagonista que, lutando contra forças externas, busca a imortalidade, nunca alcançada.  Porém, não quero me aprofundar na história em si, mas em sua forma.

Com seus elementos, a narrativa ali esboçada apresenta estrutura semelhante aquela que é utilizada pelos grandes roteiros de Arquitramas hollywodianas. Essas estórias são assim definidas por McKee, “uma estória construída ao redor de um protagonista ativo, que luta contra forças do antagonismo fundamentalmente externas para perseguir o seu desejo, em tempo contínuo, dentro de uma realidade ficcional consistente e casualmente conectada, levando-o a um final fechado com mudanças absolutas e irreversíveis”.

O mencionado autor em seu livro Story apresenta várias outras características sobre roteiros e seu processo de criação, apontando, sobretudo, para a importância da Arquitrama e seu grande apelo comercial e, também, para a maneira como as cenas e atos de uma estória devem ser desenvolvidos; tudo que aparece na tela deve ter uma motivação e apresentar uma mudança em termos de valores em relação ao protagonista, ou seja, não há tempo a perder com descrições da vida e personalidade dele quando não estão ligadas diretamente à estória ou quando não é possível transmitir tais informações ao mesmo tempo em que se transmite as mudanças que a cenas devem proporcionar.

 Enfim, você deve estar se perguntando, qual o motivo d’eu estar escrevendo essas coisas sobre roteiros?

 Bem, aqui vai meu primeiro esboço de um roteiro.

 1º  Ato

Um jovem nascido na periferia de Brasília, após passar toda sua vida vendo sua mãe sendo espancada por seu pai, dependente químico, deci

de deixar sua casa e tentar ganhar a vida vendendo dvds piratas no centro de Brasília. Já ali, descontente com o resultado de seu novo trabalho, em uma das diversas noites que passava dormindo em uma das galerias subterrâneas da cidade, é apresentado ao mundo do crack e, aos poucos, vai revertendo seus poucos ganhos para sustentar seu vício. Alguns meses após, completamente dominado pela dependência, porém acoado pelas constantes ameaças de mortes vindas de traficantes com os quais tinha dívidas, o jovem, após tentar assaltar uma loja de conveniência, é capturado, porém, durante a fuga, acaba se envolvendo em um terrível acidente de carro que resulta na morte de 2 policiais e uma mulher que dirigia um outro veículo.

2º Ato

Após mais de três meses  de prisão preventiva, o jovem passa a ser réu em uma ação penal pública por homicídio doloso, além de furto e tráfico de drogas. Mal sabia ele que a mulher fatalmente morta no acidente era filha de um influente empresário da sociedade brasiliense, dono de um dos mais renomados jornais da capital federal. A partir daí todos os holofotes da cidade passam a apontar para a ação penal, a sociedade clama por justiça e, por meses e mais meses há cobertura completa do processo que culmina com o Júri. Milhares de pessoas  se cadastram para serem jurados, outras milhares vão ao tribunal assitir a chegada do Réu e recebê-lo com ameaças. O promotor de justiça dá entrevista afirmando que fará de tudo para que a justiça seja alcançada e para que a sociedade tenha certeza de que o réu irá passar o resto de seus dias em uma penitenciaria. O jovem, indignado com a cobertura tenta corrigir as distorções dos jornais através de seus defensores públicos. Em vão. O júri é acompanhado nacionalmente, e por 6 votos a 1 ele é declarado culpado. Passam-se 5 anos, ainda na prisão o jovem torna-se chefe de um esquema de encomenda de assassinatos, além de liderar o tráfico dentro da penitenciaria. Mas, no mesmo dia no qual recebe uma proposta milionária para conseguir orquestrar um assassinato, ele se mata ao perceber que ele jamais havia planejado aquela vida para ele.

FIM.

(Final alternativo: Após 15 anos na prisão, o jovem sai, porém, sua saída é logo noticiada pela mídia, e, impossibilitado de encontrar emprego e sofrendo ameaças físicas em todos os lugares que frequentava ele se mata ao perceber que não teria como levar uma nova vida)

Um roteiro com todas as características de uma Arquitrama: um único protagonista, o jovem viciado, que luta contra forças externas (traficantes, polícia, a mídia) para perseguir seu desejo (primeiro, uma vida melhor, depois recursos financeiro para sustentar o seu vício, na sequência o desejo de uma visão não distorcida sobre os fatos que o levaram perante o júri e, finalmente, a luta pela vida que sonhava) levando-o a um final com uma mudança absoluta e irreversível, no caso, a morte.

Um roteiro que se apresenta diariamente nas páginas de jornais e nos autos de processos penais no Brasil.

Poderia ter escrito minhas linhas gerais para o roteiro utilizando um nome próprio ao invés de me referir ao protagonista apenas como jovem. Mas, chamá-lo por um nome que lhe identificasse de alguma forma seria permitir que parte de sua singularidade pudesse ser manifestada; o jovem são vários e para a mídia, para população, para o judiciário, pouco importa o nome dele, o que importa é que ele é um assassino e deve pagar por isso. É isso uma característica básica da realidade na qual ambiento meu roteiro e preciso obedecê-la, caso contrário minha realidade não é consistente, já que me propus a retratar um determinado cenário.

Eu não tenho como mostrar, em, aproximadamente, 120 minutos de filmagens que esse mesmo jovem cresceu vendo sua mãe ser espancada por seu pai, dependente químico; também não tenho espaço para apresentar o motivo que lhe fez sair de casa, juntar dinheiro para tentar conseguir um diploma técnico; igualmente, não tive espaço para mostrar as torturas as quais foi submetido quando procurou um centro de reabilitação da rede pública de saúde e, também, não tive espaço para mostrar que antes de iniciar a fuga ele havia se entregado, quando foi espancado por um dos policiais e ameaçado por outros dois. Aí sim, ele decide fugir e, desarmado, começa a ter o carro no qual fugia metralhado e, após receber um tiro em um dos braços, perde o controle da direção que causa o fatal acidente. Tal qual Gilgamesh ele procurava a vida eterna, cada qual em seu próprio plano, e, assim como o rei sumério, obteve sua resposta: aos homens a morte, aos deuses (e à segurança da sociedade/judiciário) a vida.

Mas ainda assim, tenho um bom roteiro, amarrado, com início, meio e fim. A estória, ainda que parcialmente, é contada e o público terá matéria suficiente para se divertir. O material adicional vai para versão estendida que, quem sabe, um dia será lançada. Aí o público terá material não só para o entretenimento, mas para reflexão.

McKee diz que um dos grandes desafios de um bom roteirista é conseguir condensar a história de tal maneira que os 120 minutos sejam suficientes, que o principal seja contado, que a estória se desenvolva. O público não precisa saber de tudo, ele não quer saber de tudo, seria muito cansativo e demandaria, no mínimo, o triplo de tempo. Mas o que cortar? O que não é essencial para as mudanças que ocorrem com o protagonista, sobretudo aquela mudança final, decorrente do clímax de estória.

Por mais que apresentasse toda trajetória de vida do jovem ao longo do filme, os jurados jamais seriam sensibilizados por ela. A mídia nunca publicaria tais fatos e, caso forçasse meu roteiro para que a mídia publicasse tais relatos, soaria artificial, inconsistente com a realidade na qual ambiento meu filme, o Brasil atualmente. Então é melhor cortar.

Ações penais públicas, sobretudo aquelas que são submetidas ao júri, são excelentes estórias para um roteiro, Arquitramas por excelência (Na realidade dos fatos, na experiência e sofrimento de vida daqueles que passam por algo semelhante, os “roteiros” que são tais ações se aproximam muito mais de minitramas, protagonistas passivos, com perpétuos conflitos internos e, porque não, uma pitada de antitrama, quando se vislumbra a não linearidade dos processos penais e a ausência de qualquer lógica razoável em seu desenvolvimento). Uma coisa eu tenho certeza, caso um dia me falte criatividade e competência para escrever um roteiro irei até secretaria do tribunal do júri mais próxima de mim; lá, encontrarei autos e mais autos que me apresentarão estórias que poderão ser facilmente adaptadas e transformadas em roteiros, com a facilidade de que tudo que realmente interessa para o desfecho do enredo estará lá, e tão somente isso. O desnecessário, se lá estiver, será discreto o suficiente para não atrapalhar meu trabalho.

Tenho a impressão de que um grande roteirista hollywoodiano está por trás de toda essa indústria do entretenimento que conhecemos como Júri no Brasil. É a sétima arte sensibilizando o direito.

Observação pós publicação: na verdade, se pararmos para analisar mais profundamente, o grande protagonista das arquitramas penais brasileiras é a sociedade/Estado que luta contra o crime, os réus são os antagonistas. Nesse cenário a arquitrama hollywoodiana se concretiza ainda mais, com um final extremamente positivo quando vislumbrado a partir dos valores representados pela ordem pública: a segurança foi alcançada e o criminoso devidamente punido.

Prolegômenos para um debate sobre o Direito Achado na Rua

O Direito Achado na Rua é, para além das diversas opiniões que existam, um dos grandes protagonistas de muitas discussões entre estudantes de Direito. Não é difícil encontrar  aqueles que o defendem apaixonadamente, bem como aquelas que o repudiam com todo vigor. Infelizmente, é comum escutar pessoas e mais pessoas bradando por aí opiniões que não refletem em nada sua real proposta, seja por pura ignorância ou por um preconceito decorrente da reprodução de argumentos que são frequentemente manifestados nas salas de aula, corredores da Universidade e, até mesmo, nos grandes meios de comunicação. Nas linhas abaixo espero apresentar, resumidamente, um pouco da apreensão dessa escola e, com isso, possibilitar que outras pessoas busquem, verdadeiramente, estudá-la, seja para tornar-se um agente da transformação que ela busca concretizar, seja para criticar e, com isso, enriquecer o debate.

O Direito Achado na Rua é uma proposta teórica (e vivencial) fundamentada, principalmente, na alteridade; busca abrir o direito à sensibilidade e, sobretudo, ao outro, na medida em que faz dele não um sistema na sociedade, mas sim um sistema da sociedade, enfatizando que é ele “um aspecto do processo social”. Como disse Roberto Lyra Filho, “direito é processo dentro do processo histórico: não é uma coisa feita, perfeita e acabada; é aquele vir-a-ser que se enriquece nos movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e opressões que o contradizem, mas de cujas próprias contradições brotarão novas conquistas”.

Essa visão traz consigo a proposta de inserir o conflito social como elemento central para leitura da realidade, buscando superar um modelo ideológico que “visa pensar o mundo pela sua exteriorização jurídica, numa visão normativista e substantivista, que faz da norma a unidade de análise da realidade”. Com isso, busca-se não reduzir a complexidade social, mas, antes, explicitá-la, enxergando no direito um valioso instrumento de emancipação coletiva e individual.

O nome Direito Achado na Rua, não é, portanto, apenas um verso retirado de um poema: é, sobretudo, a metáfora que coloca a rua como espaço central dos processos emergentes e transformadores que constituem o direito, o local em que “se dá a formação de sociabilidades reinventadas que permitem abrir a consciência de novos sujeitos para uma cultura de cidadania e participação democrática”.

Há uma preocupação constante em garantir o reconhecimento à diferença, condição indispensável para concretização de um projeto emancipatório do direito, já que apenas assim é possível que ele se abra à percepção e reconhecimento das mudanças sociais, sobretudo a emergência de novos sujeitos de direitos, os quais trazem consigo demandas por direitos reprimidos ou novos direitos. Conferindo ênfase ao reconhecimento, portanto, o Direito Achado na Rua aponta para uma percepção pluralista da sociedade, na qual, para além de simples atores no plano formal, os sujeitos marginalizados, como, por exemplo, minorias raciais ou religiosas vítimas de preconceitos negativos, constituem a própria sociedade.

Porém, como proposta crítica, o Direito Achado na Rua vai além. Para que suas idéias não se transformem apenas em uma promessa,  busca superar as barreiras impostas por uma postura epistemológica que privilegia uma interpretação individualista do direito, herança do racionalismo moderno, cujo ideal central no campo jurídico é a apreensão dos fenômenos sociais, reduzindo qualquer forma de diferença à uniformidade e que, além disso, propõe uma reafirmação do eu monístico, desconsiderando a importância das relações intersubjetivas para a construção de relações colaborativas, as quais reafirmam a solidariedade indispensável à constituição dessa sociedade plural.

O que fica claro no Direto Achado na Rua, ressaltando o poder transformador do protagonismo social,  é que, por maior que seja o esforço da racionalidade moderna em alcançar sua missão epistemológica da redução totalizante, há experiências que lhe fogem à compreensão e, todavia, são capazes de afetar as relações estabelecidas. Apesar de muitas vezes tal protagonismo ser completamente ignorado pelas instituições e sujeitos inseridos no campo hegemônico, mais e mais é possível perceber os reflexos das lutas promovidas pelos sujeitos marginalizados, que “longe de se limitarem a chorar na exclusão, cada vez mais reclamam, individual e colectivamente, serem ouvidos e organizam-se para resistir contra a impunidade”, reconhecendo neles mesmos sujeitos de direitos.

Trata-se, portanto, de uma proposta radical que aponta para a necessidade de se abandonar o Eu como elemento referencial central do sistema jurídico, adotando-se, em contrapartida, a perspectiva do outro que clama não ser reduzido a um objeto na relação com o sujeito que conhece, mas, antes, ser pensando efetivamente como outro, como algo que escapa ao mesmo, permanecendo singular. Assim, ao adotar o outro como referencial, o qual não deve ser reduzido e apreendido, mas, considerado e respeitado como outro, o direito se abre à alteridade essencial e à emancipação, na medida em que abrir-se ao outro é abrir-se ao diferente e deixar-se afetar, buscando retirar da indeterminação aqueles sujeitos que se encontram no plano contra hegemônico.

O Direito Achado na Rua busca, no fim, uma ampliação da liberdade dos sujeitos por meio da realização da mencionada Justiça Social. Portanto, cabe ao Direito possibilitar e, por que não, promover tal ampliação, também, a partir da dimensão (re)distributiva, uma vez que é fundamental suplantar as barreiras materiais que impedem os sujeitos de direitos de serem reconhecidos como tais e exercerem suas capacidades individuais, indispensáveis para a construção e afirmação de um projeto de vida próprio. Isso não significa uma planificação econômica, como muitos levianamente apontam por aí, mas sim um amplo compromisso com a igualdade social. E esse compromisso é permanente no Direito Achado na Rua, afinal, não é possível falar em reconhecimento sem abordar a questão da marginalização gerada por uma má distribuição de riquezas e oportunidades e por relações de dominação reproduzidas por um determinado modo de produção.

Os membros do PETDir UnB prosseguirão com outros textos desenvolvendo os diversos aspectos que foram aqui apresentados, aprofundando em seus desdobramentos e discutindo as muitas questões que com eles se relacionam. Com isso, esperamos contribuir para um debate amplo sobre os temas que surgem quando discutimos o Direito Achado na Rua.

Direitos Humanos, Intervenção Humanitária e a Corte Internacional de Justiça

Direitos Humanos,Intervenção Humanitária e a Corte Internacional de Justiça

Diego Nepomuceno Nardi

“El derecho internacional no se reduce, em absoluto, a um instrumental a servicio del poder; su destinatário final es el ser humano, debiendo atender a SUS necessidades, entre las cuales La realización de La justicia… De estos elementos se desprende – me permito insistir, – el despertar de um conciencia jurídica universal, para reconstruir, en este inicio Del siglo XXI, el derecho internacional com base en un nuevo paradigma, ya no más estatocéntrico, sino situando el ser humano em posición central y teniendo presentes los problemas que afectan a La humanidad como um todo”[1]

Augusto Cançado Trindade

“Existe uma maneira de libertar o homem da fatalidade da guerra?”, perguntou Einstein certa vez a Sigmund Freud, o qual, após analisar as questões apresentadas pelo físico, afirmou que “tudo que estabelecer laços afetivos entre os homens deve atuar contra a guerra… Ou seja, tudo o que apresenta importantes elementos de identificação entre os homens consolida laços afetivos” (FREUD apud MIRANDA, 2005 In: LEÃO: 528) funcionando, portanto, como ferramenta para combater a emergência de situações de conflitos que muitas vezes acabam por trazer consigo os terríveis flagelos da guerra.

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