Por Aurélio Faleiros
O filme os Miseráveis nos transfere para o contexto do Estado Francês tipicamente liberal do início do século XIX. O liberalismo exacerbado que marcou esse momento histórico tinha como principal característica o não intervencionismo do estado nas relações sociais. Este mesmo Estado não-intervencionista, no entanto mostrava toda sua força quando se tratava de utilizar veementemente o poder estatal para reprimir condutas incriminadas e perseguir seus autores. Inúmeras são a arbitrariedades cometidas pelo punitivismo exacerbado desta época.
Dois séculos passados, os Estados e suas legislações adotaram princípios que pretendiam complexificar a noção de justiça por meio da garantia de direitos fundamentais e humanos. No entanto, países como o Brasil, por exemplo, estão longe de efetivar essas garantias. A arbitrariedade da ação da nossa polícia e as violações a direitos fundamentais a que submetemos nossos prisioneiros são evidentes. O Brasil promove execuções e encarceramentos em massa como principal e única forma de combate ao crime. Temos uma polícia extremamente violenta e penitenciárias extremamente lotadas. Há também a incriminação de uma gama enorme de condutas, fruto de uma cultura que vê como única solução de conflitos a criminalização das relações sociais.
Observa-se então a reafirmação de uma cultura punitivista, apesar dos esforços garantistas que se têm visto desde o surgimento do Estado burguês. Porém o que chamou minha atenção e de certa forma me levou a escrever este texto não é a continuação dessa cultura desde o Estado liberal até então, mas a ampla adesão desse modelo pelas classes populares que se apresentam, ao mesmo tempo, como principal alvo da repressão.
Essa semana, o réu Mizael foi condenado a 20 anos de prisão a serem cumpridos inicialmente em regime fechado pelo assassinato da ex-namorada Mércia, o caso teve grande comoção nacional e ocupou grande espaço na mídia. Não farei análise a respeito da condenação de Mizael, o que me chamou atenção durante essa semana foi a maneira com que a população pedia, acompanhava e torcia para a condenação do réu à maior pena possível, viam como única forma de justiça o maior tempo possível de permanência do réu dentro da prisão. Dessa forma, se assemelham a Javert, acreditam cegamente que a punição pode trazer uma sociedade mais justa.
Não é difícil deparar-se com discursos que afirmam que no Brasil há um grande problema de impunidade (embora já tenhamos 550mil presos), que as penas não são cumpridas devidamente, que falta polícia, que lugar de ‘’bandido’’ é na cadeia e que direitos humanos são apenas para humanos direitos. Todo esse discurso demonstra um conservadorismo que, aos moldes do contexto liberal que em se passa a história de Valjean, vê num sistema penal cada vez mais duro e implacável a solução para o problema da criminalidade. Mas o que me intriga é: hoje em dia o que está por trás desse discurso? Quem na verdade vêm pautando um sistema penal implacável como única forma de resolução de conflitos?
É indispensável que se mencione o papel da mídia nesse contexto. Primeiramente, há uma opção política de desumanizar sempre a figura do ‘’criminoso’’(que por si é uma abstração), colocá-lo como uma criatura sub-humana, essencialmente má e indigna de quaisquer direitos. Essa imagem construída acerca da figura do ‘’bandido’’ está presente em todas as espécies de programas de TV, noticiários, internet, em todo aparelho midiático. Inúmeros são os programas de ‘’caça aos bandidos’’ no Brasil, esses programas reproduzem um estereótipo de um criminoso ‘’demonizado’’ para o qual a única solução seria o encarceramento, pelo maior período possível. Incita-se, dessa forma, uma dicotomização alienante da sociedade entre os ‘’homens de bem’’ e os ‘’bandidos perigosos’’.
Ao mesmo tempo em que se demoniza a figura do criminoso, cria-se um ideário de heroi para o estado. Enaltecem-se as figuras dos policiais, promotores e juízes como heróis nacionais que vêm para limpar as ruas da escória social, representada pelos ‘’bandidos’’.
A rede midiática brasileira exerce ainda um papel alienante por propositalmente não incitar qualquer debate acerca da eficácia desse sistema punitivo que nos é posto. Desta forma, apresenta-se o encarceramento em massa como única solução e a violência policial como necessária. O debate sobre direitos humanos é também extremamente secundarizado nesse processo. Opta-se por não demonstrar a realidade das penitenciárias brasileiras, as execuções realizadas pela polícia são mascaradas de forma que as mortes de civis aparecem sempre como ‘’justificáveis’’.
Essas premissas estão a serviço de um governo que opta claramente por uma política de segurança pública baseada no endurecimento do sistema penal. Trata-se do abandono completo a políticas públicas de prevenção de crimes para a adoção de um modelo extremamente rígido e desvinculado de outras políticas públicas, não se enxerga o problema da violência como um problema essencialmente social. A opção por esse modelo acontece muitas vezes porque ele, apesar de não lidar com a questão da violência urbana em sua amplitude, apresenta mais resultados (muitos deles falaciosos) a curto prazo o que aumenta a adesão popular. Essas medidas são ainda mais economicamente viáveis aos governos do que seria uma política pública integrada no combate a criminalidade.
Ainda que esse modelo de segurança pública esteja intrinsecamente relacionado a medidas higienistas e a processos de criminalização de grupos específicos, estes mesmo grupos ainda acreditam nessas políticas como melhor forma de combate a violência. O Brasil possui uma população carcerária exorbitante, uma polícia que promove execuções sumárias e continua sendo um país que apresenta um grande problema de segurança pública. Ainda que a ineficácia do nosso modelo esteja comprovada, há um conservadorismo e uma ausência de vontade política que secundarizam o debate público acerca da questão contribuindo para a perpetuação de uma cultura punitivista por meio de sua constante reprodução que acaba por culminar na adesão por quem, ao mesmo tempo, mais é afetado por essas medidas, os pobres.