Prolegômenos para um debate sobre o Direito Achado na Rua

O Direito Achado na Rua é, para além das diversas opiniões que existam, um dos grandes protagonistas de muitas discussões entre estudantes de Direito. Não é difícil encontrar  aqueles que o defendem apaixonadamente, bem como aquelas que o repudiam com todo vigor. Infelizmente, é comum escutar pessoas e mais pessoas bradando por aí opiniões que não refletem em nada sua real proposta, seja por pura ignorância ou por um preconceito decorrente da reprodução de argumentos que são frequentemente manifestados nas salas de aula, corredores da Universidade e, até mesmo, nos grandes meios de comunicação. Nas linhas abaixo espero apresentar, resumidamente, um pouco da apreensão dessa escola e, com isso, possibilitar que outras pessoas busquem, verdadeiramente, estudá-la, seja para tornar-se um agente da transformação que ela busca concretizar, seja para criticar e, com isso, enriquecer o debate.

O Direito Achado na Rua é uma proposta teórica (e vivencial) fundamentada, principalmente, na alteridade; busca abrir o direito à sensibilidade e, sobretudo, ao outro, na medida em que faz dele não um sistema na sociedade, mas sim um sistema da sociedade, enfatizando que é ele “um aspecto do processo social”. Como disse Roberto Lyra Filho, “direito é processo dentro do processo histórico: não é uma coisa feita, perfeita e acabada; é aquele vir-a-ser que se enriquece nos movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e opressões que o contradizem, mas de cujas próprias contradições brotarão novas conquistas”.

Essa visão traz consigo a proposta de inserir o conflito social como elemento central para leitura da realidade, buscando superar um modelo ideológico que “visa pensar o mundo pela sua exteriorização jurídica, numa visão normativista e substantivista, que faz da norma a unidade de análise da realidade”. Com isso, busca-se não reduzir a complexidade social, mas, antes, explicitá-la, enxergando no direito um valioso instrumento de emancipação coletiva e individual.

O nome Direito Achado na Rua, não é, portanto, apenas um verso retirado de um poema: é, sobretudo, a metáfora que coloca a rua como espaço central dos processos emergentes e transformadores que constituem o direito, o local em que “se dá a formação de sociabilidades reinventadas que permitem abrir a consciência de novos sujeitos para uma cultura de cidadania e participação democrática”.

Há uma preocupação constante em garantir o reconhecimento à diferença, condição indispensável para concretização de um projeto emancipatório do direito, já que apenas assim é possível que ele se abra à percepção e reconhecimento das mudanças sociais, sobretudo a emergência de novos sujeitos de direitos, os quais trazem consigo demandas por direitos reprimidos ou novos direitos. Conferindo ênfase ao reconhecimento, portanto, o Direito Achado na Rua aponta para uma percepção pluralista da sociedade, na qual, para além de simples atores no plano formal, os sujeitos marginalizados, como, por exemplo, minorias raciais ou religiosas vítimas de preconceitos negativos, constituem a própria sociedade.

Porém, como proposta crítica, o Direito Achado na Rua vai além. Para que suas idéias não se transformem apenas em uma promessa,  busca superar as barreiras impostas por uma postura epistemológica que privilegia uma interpretação individualista do direito, herança do racionalismo moderno, cujo ideal central no campo jurídico é a apreensão dos fenômenos sociais, reduzindo qualquer forma de diferença à uniformidade e que, além disso, propõe uma reafirmação do eu monístico, desconsiderando a importância das relações intersubjetivas para a construção de relações colaborativas, as quais reafirmam a solidariedade indispensável à constituição dessa sociedade plural.

O que fica claro no Direto Achado na Rua, ressaltando o poder transformador do protagonismo social,  é que, por maior que seja o esforço da racionalidade moderna em alcançar sua missão epistemológica da redução totalizante, há experiências que lhe fogem à compreensão e, todavia, são capazes de afetar as relações estabelecidas. Apesar de muitas vezes tal protagonismo ser completamente ignorado pelas instituições e sujeitos inseridos no campo hegemônico, mais e mais é possível perceber os reflexos das lutas promovidas pelos sujeitos marginalizados, que “longe de se limitarem a chorar na exclusão, cada vez mais reclamam, individual e colectivamente, serem ouvidos e organizam-se para resistir contra a impunidade”, reconhecendo neles mesmos sujeitos de direitos.

Trata-se, portanto, de uma proposta radical que aponta para a necessidade de se abandonar o Eu como elemento referencial central do sistema jurídico, adotando-se, em contrapartida, a perspectiva do outro que clama não ser reduzido a um objeto na relação com o sujeito que conhece, mas, antes, ser pensando efetivamente como outro, como algo que escapa ao mesmo, permanecendo singular. Assim, ao adotar o outro como referencial, o qual não deve ser reduzido e apreendido, mas, considerado e respeitado como outro, o direito se abre à alteridade essencial e à emancipação, na medida em que abrir-se ao outro é abrir-se ao diferente e deixar-se afetar, buscando retirar da indeterminação aqueles sujeitos que se encontram no plano contra hegemônico.

O Direito Achado na Rua busca, no fim, uma ampliação da liberdade dos sujeitos por meio da realização da mencionada Justiça Social. Portanto, cabe ao Direito possibilitar e, por que não, promover tal ampliação, também, a partir da dimensão (re)distributiva, uma vez que é fundamental suplantar as barreiras materiais que impedem os sujeitos de direitos de serem reconhecidos como tais e exercerem suas capacidades individuais, indispensáveis para a construção e afirmação de um projeto de vida próprio. Isso não significa uma planificação econômica, como muitos levianamente apontam por aí, mas sim um amplo compromisso com a igualdade social. E esse compromisso é permanente no Direito Achado na Rua, afinal, não é possível falar em reconhecimento sem abordar a questão da marginalização gerada por uma má distribuição de riquezas e oportunidades e por relações de dominação reproduzidas por um determinado modo de produção.

Os membros do PETDir UnB prosseguirão com outros textos desenvolvendo os diversos aspectos que foram aqui apresentados, aprofundando em seus desdobramentos e discutindo as muitas questões que com eles se relacionam. Com isso, esperamos contribuir para um debate amplo sobre os temas que surgem quando discutimos o Direito Achado na Rua.

9 pensamentos sobre “Prolegômenos para um debate sobre o Direito Achado na Rua

  1. Anónimo

    Parabéns pela proposta de debate, texto muito bom.
    Compartilho as críticas, e faço parte dos estudantes apaixonados pelo Direito, mas desmotivados e decepcionados com o atual estudo pragmático dele e a formação de “mais um” no mercado de trabalho, alunos não são seres pensantes do sistema e sim aplicadores do Direito. É preciso que o Direito seja máquina de reforma e Justiça sociais.

    Obs tanto quanto desnecessária, mas….
    pequenos erros: 1. emancipalção; 2. descondierando;

    1. Diego Nardi

      Obrigado pela observações, vou corrigir!

      Fica o convite para você participar do debate aqui proposto e, caso você seja aluno aqui em Brasília, participar das atividades do PETDir UnB, tenho certeza que lá você encontrará várias pessoas que compartilham das mesmas frustrações que você e almejam as mesma transformação no direito e na educação jurídica.

      Abs

  2. Gilberto Gomes

    A “Justiça Social” é diferente da Justiça em quê? Não buscaria o Direito Achado na Rua “importar” conquistas que se dão no campo político para o campo jurídico sem o necessário processo para tal?

  3. Diego Nardi

    Justiça social está inserida na ideia de justiça, é uma de suas faces, no entanto, para a maior parte dos autores, ela está relacionada com a mencionada dimensão distributiva, sobretudo à questão da superação das barreiras materiais que acabam por marginalizar sujeitos na fruição e luta por direitos através de um reestruturação econômica da sociedade, através de mudanças na divisão do trabalho, participação democrática na elaboração e aplicação do orçamento, por exemplo, distribuição de renda e outras políticas públicas e medidas que possibilitam essa transformação visando uma existência digna e com as condições necessárias para que cada qual tenha a possibilidade de desenvolver sua autonomia e concretizar seu projeto de vida. Afinal, como você bem sabe, profundas desigualdades econômicas, ou seja, injustiça social, são obstáculos para que, no sistema jurídico, o princípio da igualdade consiga operar de forma adequada.

    E não acredito que o Direito Achado na Rua busque importar as conquistas que se dão no campo político para o campo jurídico sem o necessário processo para tal; o compromisso do Direito Achado na Rua é, sobretudo, em tornar a esfera pública, ou o campo hegemônico, o mais plural possível, permitindo que as minorias, movimentos sociais, enfim, sujeitos marginalizados possam participar dos processos democráticos e que sejam ouvidos, afinal, não há como falar em legitimidade das decisões políticas quando inúmeros sujeitos ainda permanecem marginalizados, impossibilitados de reclamar sua vontade e interesses diante de processos que, muitas vezes, geram consequências diretas sobre esses grupos.

    Pelo menos eu entendo que o DAR aponta para um postura ativa dos agentes sociais, e aí estão incluídos os juízes, por exemplo, os quais, no exercício da sua função pública, devem estar atentos para os processos que se dão na rua, afinal, e você sabe disso, aplicar a norma envolve um processo decisório e hermenêutico influenciado pela subjetividade do juiz que vai requerer dele a tomada de posições políticas, as quais devem ter a sensibilidade necessária para, no caso concreto, visualizar as demandas em jogos, ter a sensibilidade necessária para compreender os sujeitos envolvidos em suas singularidades e, sobretudo, atentar-se para as demandas por direitos reprimidos ou demandas por direitos que não encontram correspondência nos institutos existentes e que, não obstante, são demandas legítimas e que devem ser, ao menos, analisadas. No meu entendimento, é fazer valer as garantias sociais e constitucionais e não uma supressão da instância política. A própria questão do processo que se deu em relação ao casamento entre pessoas do mesmo sexo reflete muito bem o que quero dizer com isso. Mas essa postura não se restringe aos juízes, ela abrange todos os sujeitos que podem agir enquanto agente sociais da transformação que o DAR propõe.

    Como você pode ver, é uma proposta que não vê nas instituições a única fonte de direito, mas dá especial importância para os conflitos sociais, elencados por grupos diversos, como movimentos sociais; é da luta e das reinvidicações deles, que não aceitam ser apenas determinados, que surge o direitos dos grupos oprimidos, que, sim, muitas vezes, é contrário ao direito legalmente posto mas, que no entanto, pode apontar para inconstitucionalidade desses direitos codificados. Não é raro, por exemplo, esse grupos, nas relações sociais apresentarem práticas que não encontram correspondência no direito estatal, mas são práticas que, para ilustrar, em relação ao direito de propriedade, vão além do entendimento jurisprudencial e doutrinário do tema, apresentando novas formas de lidar e entender a propriedade que diferem daquelas tradicionalmente estabelecidas mas que enquadram-se nas necessidades de um determinado grupo em decorrência de suas práticas sociais próprias.

  4. Anónimo

    Nardi, este texto tá muito bom. Quase faço pazes com o direito achado na rua.

    Acho que voce deve indicar os autores das suas citações, porque eu não consegui identificar quem escreve determinada ideia, se é uma série de leituras que você faz dos autores conhecidos do direito achado na rua (COSTA, SOUSA JUNIOR, AGUIAR, LYRA FILHO e etc), ou se são incluídas novas formas discursivas para pensar o movimento.

    O maior problema que eu acho do direito achado na rua é se pensar como uma sociologia jurídica. Eu tenho um texto sobre isto e gostaria bastante de publicá-lo.
    Abraços,
    Alexandre

    1. Diego Nardi

      Alexandre, vou identificar os autores, mas eu cito quatro: Lyra Filho, Boaventura e Sousa Junior e o Costa. Como era um texto pro blog, eu realmente esqueci de levar as notas de rodapé para o post, mas faço isso ainda hoje! Mas devo dizer que minha leitura do Lyra filho é bem influenciada por autores como Nancy Fraser, Honeth e Amartya Sen.

      Se tiver como, e claro, você não se importar, tem como você mandar esse seu texto para ler?

      E obrigado por ter lido e comentado.

      Abs!

  5. Olá Diego, excelente texto, há um tempo venho me debruçando sobre leituras voltadas ao Direito Achado na Rua, quando entrei no curso de Direito logo no 2° semestre senti-me descontente com o ensino puramente legalista que tenho na minha Faculdade, depois com um contanto com um professor voltado para o Direito Alternativo pude ver o outro lado do Direito, o Direito como libertação e não somente como instrumento de exploração da classe dominante. Muito me desagrada esta forma de ensino que está sendo dado nos cursos de Direito, sistema de reprodução, de tradição racionalista, a análise crítica está sendo deixada de lado. O Direito é muito mais que as leis, ou melhor, o Direito não é a lei, ele é sobretudo um instrumento transformador da realidade social.
    Pois bem, eu faço graduação em Direito e em Ciências Sociais ao mesmo tempo, e essa proposta do Direito achado na rua casa totalmente a ciência social com a jurídica que não deixa de ser social. Gostaria de saber como me aprofundar mais nesse tempo, se vocês da Unb fazem seminários, cursos de extensão para quem é de fora de Brasília etc. ?
    Abraços.

    1. Diego Nardi

      Laís, obrigado pelos comentários!

      O Pet realiza atividades ao longo do semestre letivo na UnB, porém, como você mora em outra cidade que não Brasília, fica, de fato, difícil de participar! Mas, a partir desse seu questionamento, vou levar para os membros a idéia de fazer uma atividade nas férias de meio de ano ou em um feriado ao longo do ano que vem.

      No entanto, há o grupo Diálogos Lyrianos que eu acredito estar desenvolvendo algumas atividades, você pode procurar mais informações no blog deles. Além disso, O Núcleo de Estudos para Paz e Direitos Humanos da UnB (o NEP) costuma desenvolver atividades junto com grupos ligados ao Direito Achado na Rua. Infelizmente, não tenho informações mais concretas sobre, mas acredito que lá você pode encontrar algo.

      Abraços!

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