O outro

Por Carolina Freire

Fazer Direito na Universidade de Brasília é selo de privilégio, e de privilégio a maioria de seus cursistas conhece bem. O berço nobre, por vezes jurista, lhes garante uma imensidão de acessos. De cursos que fazem volume no lattes até viagens ao exterior, os capitais cultural e acadêmico se recheiam de tudo que parece relevante no quesito saber.

Composto por discentes e docentes que parecem compartilhar da mesma história de vida já narrada, o elitismo do curso não é velado. Viver entre iguais é rotina que se interrompe em alguns raros momentos, tais como o estágio obrigatório realizado no Núcleo de Prática Jurídica (NPJ)¹ e a extensão.

No núcleo, a orientação recebida é de necessidade de polidez no atendimento ao público de baixa renda e cuja escolaridade é reflexo disso. São demandas diversas onde o cunho jurídico precisa ser retirado do emaranhado de informações trazido pelos assessorados, em cronologia não linear e com filtro de relevância bem diferente do utilizado pelo jurista. Aqui a perspectiva é clientelista, de serviço prestado, de favor, corroborada todas as vezes em que nos chamam de ‘doutor(a)’.

Por outro lado, quando se fala em extensão a sugestão é de horizontalidade. Mesmo assim o estranhamento do outro distante – espacial e socialmente – é latente. É estranhamento que se desdobra em fetiche do exótico, é visita ao zoológico social, é alma boa fazendo caridade, é serviço jesuítico moderno com inspiração iluminista levando de uma só vez a salvação e o conhecimento àquelas almas em escuridão.

Por vezes confundida com serviço voluntário, a troca de saberes corre o risco de ser apenas colonização. Assim como a horizontalidade, a bilateralidade do fluxo de conhecimentos também depende de exercício contínuo. Há de se entender, neste processo, que os conhecimentos não se encontram em mesmo patamar, não porque valem mais ou menos – comparativamente – mas porque são valorados de diferentes formas. Disso deriva a necessidade de não ser ingênuo, não basta fazer-se de bom moço que valoriza toda forma de saber, se ali chegará com o distanciamento digno de cientista em trabalho laboratorial, se vai instrumentalizar, transformando aquelas pessoas em meros objetos de estudo, matéria prima para artigo publicado. Extensão não é cursada, é vivida.

Em ambos os casos se requer o exercício da capacidade comunicativa, é sobre compreensão mútua. E nessa esfera, me desculpem dizer, mas pouco vale saber outros idiomas, conhecer o jargão jurista ou ter todas as expressões de latim ao pé da letra. Aqui é sobre escuta ativa – guardem esse termo – é sobre interpretação não cobrada pelo CESPE, sobre paciência e também carinho. Por outro lado, também é sobre escolhas, de palavras, de expressões, de construção do enunciado. Para além de questões de fala, é gesto, é contato, é gente.

E quem sabe assim, aprendendo a utilizar a linguagem pra entender e ser entendido em vez de selecionar verbete que silencia, os abismos que distanciam os acadêmicos da ‘comunidade’ possam ser reduzidos. Talvez compreendendo a linguagem como instrumento dual de acesso e dominação que esconde infinita disputa de poder por trás da falsa neutralidade, poderemos nadar contra a corrente em escolher a comunicação em detrimento do atrativo e reprovável hábito de fazer-se incompreensível como carimbo de status.

Eu curso Direito e por meio da extensão encontro pertencimento e sonho que este seja realidade para a infinidade de ‘outros’ que me rodeiam. Eu sou acadêmica, mas também sou comunidade; eu sou a graduanda com quem você esbarra no corredor, mas também sou o outro do qual você se distancia. Eu sou o silêncio dos meus iguais que não conseguiram estar em espaços como estes, mas também sou seu grito sempre que ocupo, seu orgulho sempre que resisto. Eu tenho nome sem origem estrangeira e endereço onde você nunca pisou, e eu vou fazer diferença, senão para os seus, para os meus.

¹ Espaço da UnB localizado na Ceilândia e onde há o acolhimento de demandas jurídicas de moradores da cidade que tenham o rendimento limitado a 3 salários mínimos.

Um pensamento sobre “O outro

  1. Marina Andrade

    Que texto incrível!
    Mais que texto, temvfala, vida, voz, alma, ressonância, vibração, luz, sabedoria, tem tudo!!!!!

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