Conservadorismo, Ideologia e… na na na na Batman!

Por Pedro Godeiro

Vi ontem o novo filme do Batman: The Dark Knigth Rises. Ah, aviso logo que o post vai contar sim alguns SPOILERS sobre o filme, para quem não gosta desse tipo de coisa.

Para mim o filme é, além de muito divertido (mas meio longo também), ideológico, num sentido até bem ortodoxo do termo, conservador e, ousando um pouco, uma tentativa de repetição. Tentativa, obviamente, por que falha, horrivelmente no meu ver, ao tentar “repetir” o sucesso filme anterior: só se “repete” o que há de mais superficial do filme anterior, a mesma cena de abertura excitante com o vilão principal; a ameaça a cidade de Gotham como um todo; o problema de Batman em se “moldar” à sociedade “normal” através de um relacionamento amoroso; e, as cenas de ação exageradas e os novos equipamentos (que são o grande charme do filme).

Isso, como já explica bem Zizek, é uma falsa “repetição”. A “repetição” verdadeira é aquela que resgata o gesto radical fundamental do primeiro evento, ou seja, no caso, seria a própria radicalidade do antagonista do Batman – o Coringa à la Piada Mortal. Bane, apesar de ser um vilão até interessante, é capenga, do pé à ponta. Um semi-quase-pseudo revolucionário: brada a libertação do povo, mas dirige com mão de ferro; promete uma reestruturação de Gotham, e traz o puro caos, um carnaval destrutivo; fala de representar os excluídos, mas se auto-entitula a “Liga das Sombras”. Mas, talvez, o pior seja o quão decepcionante ele é.

Explico: ele aparenta ser um vilão interessante. É , supostamente, um miserável, nascido numa prisão no cu do mundo que conseguiu escapar e agora dá trabalho aos órfãos desamparados de Gotham, por já terem mais de 16 anos e o abrigo não mais poder dá-lhes apoio. Ele também procura apoio na camada mais excluída de Gotham: os presos. “Criminosos” supostamente presos por envolvimento com o crime organizado, mas através de uma lei de exceção que não permite, por exemplo, condicional. Isso tudo, óbvio, escorado numa personalidade fanática, como bem disse Alfred, “alguém que tem o poder da crença”. Uma receita atrativa para um revolucionário.

Entretanto o desenrolar do filme mata essa possibilidade: o furor revolucionário do Bane é autocrático, como se fosse algo inerente a sua pessoa, de uma maneira muito mais próxima a Hitler, Mussolini, Vargas, ou seja, ela se proclama o “salvador” de maneira schmittiana: através de uma série de explosões – um gigantesco ataque terrorista que prende a polícia e culmina numa ameaça nuclear – ele cria um perfeito estado de sítio e se torna o líder da situação, mandando e desmandando para formar a nova normalidade.

“Vixe, mas se o cara é doido assim, como que ele não é tão radical quanto o coringa?”, da mesma maneira que, como já dizia Marcuse, quem não quer discutir fascismo, não pode discutir capitalismo: as duas coisas são face da mesma moeda. Bane e Batman são essencialmente iguais, ao contrário do Coringa. Nosso amigo risonho é o complementar ao Batman: um é a restauração da ordem, da segurança – o outro é meramente o caos, não há, como em Bane e no Batman, um desejo de harmonia ou reestruturação: o Coringa só quer, como disse Alfred, “watch the world burn”, ver o circo pegar fogo.

O filme é ideológico na medida em que camufla essa identidade fundamental entre Bane e Batman com uma “retórica”, ou melhor, com superficialidades deslocam o olhar do expectador: o que é o final do filme anterior? Não é o Batman fazendo o necessário (assumindo o assassinato de Harvey Dent) para Gotham, criando um novo estado de exceção “necessário” para redefinir a normalidade e dar um jeito de limpar as ruas dos bandidos? E não é ele que, novamente, no final do filme, com seu pseudo-sacrifício restaura a “normalidade” e a paz? Não é exatamente o que Bane havia feito alguns minutos antes?

Assim chegamos ao motivo pelo qual o Batman é conservador: não apenas é a encarnação do mito liberal de que existem oportunidades iguais para todos e qualquer um pode ser qualquer coisa e chegar a qualquer lugar (esse é um dos motivos da máscara); como também ele procede de maneira extremamente schmittiana: através de uma estetização caricatural do processo revolucionário (cuja grande diferença pro que Batman faz é o objetivo, Bane quer subverter a ordem e ele mantê-la) se pretende mostrar a Ordem e a Tradição como valores necessários para bem estar da sociedade. Não é por nada que o “exército” do Batman é composto pela polícia enquanto Bane nunca chega a realizar o momento de reestruturação de Gotham, que, aliás, nunca foi sua meta, o que só confirma seu status de pseudo-revolucionário.

“Bem, o filme é reaça, conservador, mas é divertido. E aí?” o problema é que o cinema é, como diz Zizek, a arte pevertida: ele não te diz o que (o conservadorismo) desejar, mas sim como (através desse procedimento schmittiano da exceção) desejar. É aí que mora o perigo: o filme não serve apenas de apologia ao Capital, ao esquema lei e ordem e etc, ele também serve para convencer de que o FMI, por exemplo, é um “Batman” na Grécia (quando eles atropelaram o processo eleitoral pra salvar o Euro) ou pra justificar, como brada o Comissário Gordon, que o direito pode sim servir como grilhões para os “heróis” e vale tudo pra “voltar” a “normalidade”.

15 pensamentos sobre “Conservadorismo, Ideologia e… na na na na Batman!

  1. Gabriela Tavares

    Bela abordagem, Pedro, mas eu tive impressões completamente diferentes do filme. Está absolutamente fresco na minha mente (acabei de ver) e o que me impressionou foi a forma como “limparam Gotham”, a forma como não é discutido no filme se aquilo foi bom para a cidade. O crime organizado foi desfeito, mas a troco de quê? O próprio Gordon admite que foi construído em cima de uma mentira. Qual mentira? A morte de Harvey Dent? Quem sabe a grande mentira que foi capaz de reconstruir Gotham foi a completa transformação da cidade em um estado de exceção onde, uma vez preso, você não mais consegue sair do sistema carcerário. O crime lá era tão organizado e tão podre que foi necessário esquecer essa parte da sociedade ao invés de reitegrá-la. A serviço de quem está o Batman? A polícia? O Estado? Fiquei me perguntando se a Gotham construída é boa e para quem é boa.
    Várias outras coisas… Também. : P

    1. Gabi, pelo menos no ponto que tu expôs aí, não vi muitas diferenças. A pseudo-morte de Hardey Dent peloBatman foi o “fato” que fundamentou a promulgação/outorga da lei de exceção penal (Hardey Dent Act, né?) ;]

      O Batman tá a serviço do que é posto xD

      Mas fiquei bastante curioso pra saber quais as outras diferenças e o motivo que tornariam ela tão diferentes da minha =D

  2. Anónimo

    Excelente a resenha Pedro. Diria quase irretocável. Tive percepções parecidas em boa parte dos pontos que levantou. Gostaria de chamar a atenção também ao fato de o discurso do Bane, em minha opinião, se aproximar, de alguma forma, ao discurso do Loki n’Os Vingadores. É a percepção de que a liberdade (ou chamemos aqui, para debater dentro do clube, “liberdade do capital”) não leva à igualdade e não significa liberdade para todos, mas que o remédio para isso seria a igual opressão de todos a um autócrata exógeno.

    1. Anónimo

      Discordo, Bane não é um autocrata exógeno, ele cria uma situação “ideal” de sociedade isolada e não interfere mais, deixa o poder nas mãos do “povo”, que oprime a si mesmo.

      1. Acho uma afirmação muito complicada de ser defendida. Bane cria uma versão caricatural de um processo revolucionário, reduzindo-o praticamente ao período, digamos assim, de carnaval: onde somem as hierarquias e a “normalidade” é destruída, necessitando ser recomposta (ou seja, age como o ditador schmittiano).
        Não há nenhuma preocupação do Bane em criar novas estruturas capazes de fomentar liberdade, igualdade, fraternidade ou novas subjetividades. Muito pelo contrário: me parece que Gotham vira a Inglaterra de Laranja Mecânica, não há nenhuma estrutura que lembre os sovietes russos ou as comunas chinesas, por exemplo.
        E Bane é bastante presente: sua milícia parece bastante atuante, seja na execução das penas do tribunal, seja caçando policiais e fazendo ronda em locais que ele considera estratégicos. Fora que ele também é o controlador da bomba atômica que fica passeando pela cidade, como um lembrete pro “povo” sobre quem manda de verdade….

    1. O Batman morre pra “perdoar” (já que de certa forma a intenção da bomba era punir a todos por seus menores erros e, como a “mulher-gato” lembra, ninguém é “inocente” em Gotham) as pessoas dos pecados que são colocados à mostra pelo vilão, e pra que elas continuem tendo esperança. E no final aparece vivo, como se tivesse ressuscitado. Pra completar, a esmagadora maioria das pessoas não reconhece o que ele fez por elas. Confesso que, sendo cristão, achei bem interessante. Mas a interpretação assim não é obrigatória! De todo modo é um ótimo filme 🙂

  3. Anónimo

    “ele cria um perfeito estado de sítio e se torna o líder da situação, mandando e desmandando para formar a nova normalidade.” Se me lembro bem do filme você errou, depois de decretado o estado de sítio Bane não manda mais em nada, tem até uma cena no “tribunal” em que um personagem (não me lembro do nome) chama por Bane, dizendo que estava a serviço dele, e o “Juiz”, Crane, diz que Bane não manda mais, e o filme não mostra nenhuma interferência dele, nem mesmo se foi ele quem colocou Crane como juiz ou não.

    1. Acho que temos um divergência na leitura da situação: o Bane tem uma milícia dele, que até funciona como “exército” contra os policiais, lembra? Além dele também ter bastante influência na corte, tanto que até o auxiliar do Dagget clama pelo Bane. Ah, a milícia do Bane também é quem garante a execução das penas de exílio/morte, fora ela caçar os policiais.

      Temos de lembrar também que o filme não poderia mostrar tudo, a gente tem que se virar fazendo umas inferências aqui e ali ;D

      1. Anónimo

        É, acho que é uma diferença de percepção mesmo. Eu assumi que a milícia estava a serviço da corte, e que ambas estavam sobre controle do povo, porque realmente não é mostrada nenhuma interferência direta do Bane, é justo nessa cena do auxiliar do Dagget que o Crane diz que o Bane não manda. E o disucrso do Bane era sobre devolver Gothan ao seu povo, por isso, e por não mostrá-lo interferindo, inferi que ele não interferia. Mas realmente é uma questão de interpretação. Só acho que se interpretarmos assim o jogo ideológico muda, e o próprio povo sentencia os seus à morte por revanchismo, no caso dos “ex-ricos”, por medo no caso dos policiais, e por achar que esses não se encaixam no novo regime da coletividade.

  4. Muito interessante sua crítica, só acho que peca em 2 pontos fundamentais ao meu ver. O primeiro é que esse filme não é uma tentativa de cópia do segundo, e sim uma tentativa de ingração com primeiro (que dialóga diretamente com esse e vc nem citou) e o segundo. Essa formulinha de roteiro não é uma cópia e sim a estrutura clássica de roteiro que o cinema americano hollywoodiano usa e ensina para quem quiser ler (como em seus best-sellers Manual do Roteiro e Story), por isso uma análise estrutural no filme é meio vaga, que pode ser feita com qualquer filme. E acho que analizar o conjunto da obra seria mais interessante, e nesse aspecto e concordo plenamente com o tom conservador do filme, mas pela transformação da ideologia do Batman do primeiro (um símbolo da justiça sem rosto), no segundo (uma tentativa de encontrar esse rosto, de forma que o Batman não seja mais necessário, uma tentativa frustrada inclusive) e no terceiro (com a volta necessária do Batman, já que ele criou um tipo de vilão que antes não existia em Gothan, ele criou aberrações que só ele pode destruir, mas ele larga um Robin pra continuar essa luta e vai casar com a Mulher-Gato, wtf.), mas destrinchar isso demoraria muito para um comentário num blog, haha! E o seu segundo erro fundamental de análise, na minha opinião, é que vc escolheu os vilões errados! No segundo filme, não é o Coringa o vilão, nem no terceiro o Bane. Eles só são uma mera distração para os reais personagens que se transforman a partir da trama e que constroem toda a estrutura da história, os verdadeiros vilões são o Duas-Caras e a Talia (que inclusive foi pouco explorada, sendo uma das vilãs mais legais da HQ, tendo até mesmo um filho com o Bruce Wayne, o Damian), então acho até um pouco bobo ter os personagens que puramente caóticos como foco principal da crítica do filme. Mas um dia a gente marca um bar e discute isso melhor! haha! Beijos!

    1. Concordo com o primeiro ponto: realmente como uma crítica à estrutura do filme é algo fraco mesmo. Quando eu falei de “repetição” eu tinha em mente mais a questão do segundo filme ser algo “exemplar”, no sentido de paradigmático, desse feijão com arroz de hollywood. Tanto que era a expectativa de muitos fã de que ele fosse do mesmo “nível” do segundo filme: havia a esperança de um vilão tão completo/radical quanto um coringa, de uma trama bem tão bem construída quanto a do The Dark Knight, de uma Batman moralmente atormentado por enfrentar um mundo que não é mais preto-e-branco e etc…
      Entretanto, quando essa evolução da “ideologia” do Batman, discordo plenamente. Só existiu uma ideologia pro Batman desde o começo: essa explicitada no terceiro. A grande diferença é que no segundo filme, por exemplo, o Batman é algo mais do que o defensor dessa ideologia conservadora: por causa do Coringa ele é levado (ou elevado, rá!) a defensor de uma visão “comprometida”, uma visão que acredita que algo pode ser feito e que são necessárias medidas que impactem num nível estrutural – como uma reforma da promotoria com o Dent – e não apenas “watch the world burn”. Ele assume até uma visão mais “esquerdista”: de que as pessoas não são tão inteiramente ruins. A visão de que o mundo é um lugar horrível, de que as pessoas estão muito longe de qualquer forma de salvação é do Coringa.
      O que acontece com os filmes é que no primeiro o Batman surge: ele começa o trabalho de justiceiro “vigilante”, ainda que seja para manter a ordem e melhorar o sistema. No segundo ele tem a epifania de que isso não é mais o suficiente. São necessárias mudanças estruturais na estrutura da administração de gotham pra resolver o problema do crime: ou atuação “brilhante” de Harvey Dent, que conseguiria fazer as mudanças de maneiras mais “reformistas” e “usar” o sistema penal/punitivo de maneira mais “eficiente”, ou uma mudança realmente brusca, como a do final do segundo filme que o batman a assume a culpa do assassinato de Dent para gerar o estado de exceção necessário para o Harvey Dent Act, lei que facilita a persecução de suspeita e é responsável por “limpar” as ruas de Gotham.
      No terceiro filme… Não acontece nada, que dizer, melhor, as coisas regridem: Batman passa de um conflito sobre seu papel na sociedade, para uma pseudo-crise qualquer sobre por que ele conseguiu “seguir” em frente, que gira em torno de um amor privado; o vilão é bem menos completo, radical e carismático: Bane é um arremedo de pseudo-revolucionário;e, não há nenhuma tentativa real de mudar o “sistema” ou as coisas num nível estrutural, tanto que no final só temos uma “aceitação”: o batman arranja um “herdeiro” e pseudo-foge, não se sabe se ele volta ou se ele conseguirá ficar com a mulher-gato ou o que seja.
      Quanto aos vilões, Duas-Caras é um subproduto do Coringa, uma prova do quão radical ele é: ele consegue até corromper aquele que o Batman escolheu como seu complementar, como aquele capaz de realmente mudar a situação de Gotham. Tanto que a moeda do Duas-Caras nada mais é que uma forma de emular a aleatoriedade do Coringa… E a Talia não é tão importante no filme. Ainda que a verdadeira “vilã”, que planeja tudo, Bane é o carinha que vai a luta e faz o papel de pseudo-revolucionário e etc, etc… ele servia melhor para ilustrar os exemplos. Pra falar da Talia, seria necessário falar só dela. xD
      Ah, desculpa ter aloprado na resposta. Mas teu comentário me animou muito ‘-‘ Aguardo um convite pra gente ir discutir isso no bar, até por que eu li muito pouco as HQ’s do Batman e fala só pelos filmes mesmo…

      1. hahaha! a oferta do bar está completamente de pé! também me empolgo com essas discussões! mas voltando ao q interessa, o fato de vc não conhecer as revistinhas acho q tira um poucos dos easter eggs que o filme proporciona para os fãs, desde a quase filha da Mulher-Gato (aquele mina que ela cuida) até o próprio Damian Wayne, mas então focando mais ao filmes, eu não entendi o que vc considera a ideologia do batman, pois depois disso vc só descreveu os filmes. E a questão dos vilões é interessante, pois o próprio Curinga diz q ele é uma reação ao batman, isto é, se o batman nunca tivesse existido nunca havia vilões como o Curinga (e no começo do filme dá a entender que o bane tbm faz parte dessa turma, mas no fim é revelado q não, já q a vilã é a Talia :P), e eles se enfrentariam até um vencer o outro, como em qualquer outro filme de herói. Mas pq o segundo Batman é tão bom? Pq se o Batman não existisse, o Dent seria o herói verdadeiro, mas depois da distorção que o Batman criou em Gothan, o Dent virou o Duas-Caras. Isso sim muda a trama e a ideologia do Batman, afinal, tudo tem sem preço, inclusive o próprio Batman. E o Bruce Wayne entendeu isso, por isso, assumiu a culpa e desapareceu. E o terceiro mostra q o Bruce precisa do Batman, por ele próprio, não apenas por Gothan

  5. waldomiro roberto calmasini

    pra mim, fica clara a analogia entre o Harvey Dent Act e a lei anti-terrorismo; e a sua incapacidade de resolver o verdadeiro conflito, mascarando-o até que recrudesça… grande crítica à direita americana e muita diversão!

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